João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Humanos seriam mais felizes se imitassem vida dos gatos, diz John Gray

Perdido nas minhas ansiedades, não consigo habitar o presente como eles o fazem

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Sou um amante de gatos. Se a humanidade se divide entre amantes de gatos e amantes de cachorros, pertenço ao primeiro time. O que gosto neles?

Exatamente o mesmo que detesto neles: o fato de serem tão diferentes de mim, de você, de nós, humanos. Eu, perdido nas minhas ansiedades, não consigo habitar o presente como eles o fazem. A minha cabeça oscila entre o passado e o futuro, entre os erros e a mortalidade.

Os gatos são imortais, se entendermos pelo conceito o que Wittgenstein entendia por imortalidade: a ausência de tempo. Esse conceito não existe para eles. Por isso são felizes, ou parecem felizes, repetindo os seus rituais como se fosse a primeira vez.

Sou amante de gatos, repito. Mas será que tenho alguma coisa a aprender com eles? Será que os comportamentos felinos podem aliviar o peso da minha mortalidade?

Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 24.nov.2020
Angelo Abu/Folhapress

O filósofo John Gray, em livro recém-publicado (“Feline Philosophy: Cats and the Meaning of Life”), acredita que sim. E eu agradeço-lhe o fato de me ter oferecido os sofisticados conceitos com que abri a minha apologia dos bichos.

Como escreve Gray, os gatos são “arquirrealistas”: a realidade, da qual não duvidam nem procuram escapar, é suficiente para eles.

Não para nós. Conscientes e autoconscientes, sabemos do fim que nos espera. Que fazer?

O óbvio: se a realidade não é promissora, o melhor é escaparmos dela. A história das religiões ou a história da filosofia têm sido uma longa tentativa de aliviarmos a nossa condição. Pela promessa da vida eterna, ou pelo menos da tranquilidade possível (a “ataraxia” de que falavam os gregos), preenchemos a realidade com fições e simulacros.

Se estivermos dispostos a aprender com os gatos, abandonaremos essas ficções —e Gray oferece uma lista final com conselhos felinos. Entre esses conselhos, e por irônico que pareça, está a recomendação para nunca levarmos a sério alguém que nos dá conselhos sobre a vida feliz. A ironia escapou a Gray.

Mas não foi apenas a ironia. Temo que também tenha sido a coerência e a racionalidade, sobretudo quando o seu anti-humanismo se revela.

Nada de novo. Sou leitor de Gray há muitos anos e acompanhei o seu trajeto intelectual: do liberalismo clássico para o pluralismo (via Isaiah Berlin), até chegar a esse quietismo zen que atribui os males do mundo às ilusões do ego.

Pelo caminho, perdeu-se a sutileza e o rigor filosóficos. Um exemplo: se a natureza humana, que para Gray é irredimível, se define por essa busca de sentido para a existência, como argumentar, ao mesmo tempo, que os homens tentam escapar à realidade na busca de um sentido para a existência?

Logicamente, se aquilo que define e enobrece os gatos é eles serem como são, o mesmo pode ser dito sobre os humanos: a nossa sede de conhecimento, de beleza, de justiça ou de fé é a expressão genuína
da nossa humanidade. Não é uma fuga, muito menos um defeito que é preciso extinguir.

Nessa sede pode existir sofrimento, ansiedade, miséria e até ruína. Mas pode existir também literatura, arte, amor, aventura. E, quem sabe, talvez felicidade.

Além disso, ainda está por demonstrar que os homens seriam mais felizes se abandonassem a sua natureza e seguissem a vida bestial dos gatos.

Basta olhar para algumas das recomendações de Gray no final do ensaio. “Nunca tentes persuadir os seres humanos a serem razoáveis.” “Não procures um sentido no sofrimento.” “É preferível ser indiferente aos outros do que sentir que devemos amá-los.”

Pessoalmente, posso concordar com alguns desses pensamentos, sobretudo com o último. Mas o que funciona para mim pode não funcionar para o meu vizinho, porque essa é uma lição que Gray já conheceu um dia: a lição do pluralismo.

Será que Gray não entende que apresentar a vida dos gatos como o modelo supremo a imitar é uma rendição ao pensamento dogmático que ele passou a carreira a combater?

Depois da ruína do nazismo, Heidegger afirmou: só um Deus nos pode salvar. John Gray substituiu esse altar divino por um altar felino. Triste consolação.

Sou um amante de gatos, sim. Há momentos em que invejo aquele autocontentamento fora do tempo, deplorando o nosso calcanhar de Aquiles: a consciência da mortalidade.

Mas é preciso lembrar, ó filósofos felinos!, que era precisamente o calcanhar que tornava Aquiles humano.

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