João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Ler Don DeLillo é terapia para bolhas de alienação e autocontentamento

Leitor termina 'The Silence' sem saber se a libertação da tecnologia é um castigo ou um alívio

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Um mundo tecnologicamente avançado, onde as máquinas dominam os seres humanos, eis o supremo clichê da fição científica distópica.

Nunca acreditei nessa premissa. A minha distopia é a inversa: um mundo tecnologicamente avançado mas onde as máquinas deixam de funcionar —sem aviso, sem explicação.

O mais recente livro de Don DeLillo, “The Silence", cumpre esse terror. Estamos em 2022. É domingo, dia de Super Bowl. Mas as máquinas —aviões, televisões, celulares, email— se apagam misteriosamente.

É o silêncio, o grande silêncio, o supremo terror do homem pós-moderno, que não apenas depende da tecnologia como vive dentro dela. “A vida pode ser tão interessante”, comenta DeLillo, “que nos esquecemos de ter medo”.

Homem olha para câmera
Don DeLillo em Roma, na Itália, em 1999 - Marcello Mencarini/Leemage

E, no entanto, como negar que a “tirania da contingência” tem uma palavra decisiva nos nossos cálculos mundanos? “Quanto mais avançados, mais vulneráveis”, afirma um dos personagens da novela.

Não é uma observação original: Rousseau, séculos atrás, já tinha alertado para essa perda de inocência que vem com a civilização. A grande diferença é que o filósofo genebrino acreditava na possibilidade de domarmos o destino, como qualquer pensador moderno.

DeLillo, um autor de formação católica, não tem essa ilusão, nem quer. E terminamos “The Silence” sem saber se a libertação da tecnologia é um castigo ou um alívio. Talvez seja ambos. Quem disse que o apocalipse não é também um recomeço?

“The Silence” está longe de ser o melhor DeLillo. A prosa tornou-se mecânica, sem o fulgor de “White Noise”, de 1985, ou “Underworld”, de 1997, duas obras-primas que interpretaram e definiram as nossas paranoias contemporâneas.

Além disso, DeLillo leva demasiado longe o velho expediente de transformar cada personagem numa espécie de “cabeça falante”, sem o sentido de ironia ou de autoironia que era possível vislumbrar em obras anteriores. Para retratar um mundo vazio não é preciso esvaziar os seus habitantes de toda a humanidade. Samuel Beckett ensina.

Seja como for, é impossível negar a coerência de um autor que, depois de Conrad, Kafka e Philip Roth, não se furta à mais desconfortável das perguntas: como conviver com o terror da contingência?

Como negar que, por detrás do esplendor tecnológico e midiático, existe uma realidade primitiva —o terrorismo (em “Mao II”), o colapso ambiental (em “White Noise”), a ruína financeira (em “Cosmopolis”), o próprio medo da morte (em “Underworld”)— que persiste em não desaparecer?

Para quem vive em bolhas de alienação e autocontentamento, ler Don DeLillo é uma forma de terapia.

The Silence

  • Onde Amazon
  • Preço R$129,56 (128 págs.)
  • Autor Don DeLillo
  • Editora Picador
  • Língua Inglês

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