João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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O mundo olha para Trump como olhamos para os melhores vilões do cinema

Bruno Maçães oferece a mais criativa e erudita explicação para o espetáculo dos últimos 4 anos

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Agora que Donald Trump parece disposto a fechar um capítulo ("A Presidência") para abrir outro ("A Vingança"), quem o detesta ainda olha para ele sem conseguir explicar. Um populista, um ditador, um fascista. Ou, em termos psiquiátricos, um narcisista, um esquizoide, um psicopata.

Curiosamente, ou talvez não, o mundo olha para Trump como olhamos os melhores vilões do cinema: com ansiedade e repulsa. Quando será que o prendem? Quando será que o matam?

A diferença, a grande diferença entre o cinema e a vida, é que a "suspensão da descrença" é temporária quando vemos um filme.

Ilustração de silhueta do perfil de Donald Trump cabisbaixo. Há listras vermelhas no fundo que se mesclam com listras brancas na silhueta de sua roupa
Angelo Abu/Folhapress

No caso de Trump, a suspensão é permanente. De tal modo que tomamos a ficção por real.

Um erro, avisa Bruno Maçães, autor do mais original e estimulante ensaio que li neste ano sobre a América atual: "History Has Begun: The Birth of a New America" (Oxford University Press, 248 págs.). Entender Trump implica notar que aquilo já é outra coisa. Mas que coisa?

Para responder à pergunta, Maçães começa pelo princípio. Ou, melhor dizendo, pelo falso princípio da república americana: quando os "pais fundadores" disseram adeus à Europa, esse adeus foi limitado. Os alicerces dos Estados Unidos eram ainda reconhecidamente europeus, iluministas, liberais.

Mas essa casca europeia foi sendo rachada e abandonada, não apenas pela dinâmica interna da nova nação e das novas gentes que a habitavam e recriavam —mas pelas trágicas contingências da história.

No século 20, a grande civilização europeia suicidava-se em Verdun e em Auschwitz. Os Estados Unidos, que eram já a potência econômica dominante em inícios da centúria, tornaram-se a superpotência. Uma superpotência contestada pela alternativa comunista até 1989 e incontestada depois da dissolução da União Soviética —pelo menos, até a emergência da China.

Pois bem: se a Europa, carregada de passado, procurou reconstruir-se no pós-Segunda Guerra sobre princípios mais sólidos (a União Europeia é o arranjo arquitetônico que saiu das ruínas), os Estados Unidos, na interpretação de Bruno Maçães, optaram por um outro caminho: não o de se conformarem com a realidade, mas o de escaparem à realidade, criando novas realidades.

Dito de outra forma: para que viver nos limites estreitos do roteiro liberal quando é possível escrever outros roteiros e, até, transformar a vida num romance de infinitas possibilidades?

Essa evasão existencial não poupou a política e os seus líderes. Pelo contrário: como afirmava Ronald Reagan, citado no livro, era inconcebível que alguém chegasse à Casa Branca sem ter sido ator primeiro.

Escusado será dizer que, depois de Reagan, atores não faltaram: uns melhores (Obama), outros piores (Bill Clinton) —até chegarmos ao supremo "entertainer": o Donald, claro.

E, com ele, vieram as cadências próprias de uma novela, com a candidatura presidencial que ninguém levou a sério; a vitória sísmica; o reinado de trevas; o impeachment que prometia derrubar o monstro; a sobrevivência dele; um novo confronto épico com o "vírus chinês" que ele desvalorizava; a recuperação heroica mesmo a tempo da eleição; e, finalmente, a derrota, depois de um longo suspense.

Ou, como nas melhores séries, ele pode regressar para uma continuação?

O auditório reagiu a Trump com os instrumentos tradicionais da política tradicional. Daí a terminologia —populista, fascista, doente mental etc.— com que o velho mundo pretendia explicar o novo.

Para Bruno Maçães, nem tudo é mau nesse novo mundo. Nas relações internacionais, por exemplo, é de saudar o abandono de um certo "imperialismo liberal" e a preferência por uma ordem pluralista, em que o mais importante não é fazer do mundo uma cópia da América, mas um lugar seguro para a América.

Pessoalmente, não estou tão convencido sobre as virtudes do "princípio da irrealidade", onde "tudo é possível mas nada é verdadeiro".

Nesses quatro anos, apesar do som e da fúria, tivemos sorte. Podemos não ter sorte da próxima vez, sobretudo se a irrealidade transbordar de forma trágica para o banal cotidiano onde vivemos. Como diria Woody Allen, podemos não gostar muito da realidade, mas ela ainda é o único lugar onde podemos comer um bom filé.

Seja como for, Bruno Maçães oferece a mais inventiva e erudita explicação para o espetáculo que esteve em cena desde 2016. E que continuará, com Trump e até com Joe Biden.

Aliás, por falar em Biden, onde é que eu já vi esse filme de um velho pistoleiro aposentado que é obrigado a regressar à cidade para afastar o xerife corrupto?

Vou perguntar a Clint Eastwood.

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