João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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'On the Rocks' é uma fábula sobre as responsabilidades dos pais perante os filhos

A grande responsabilidade dos pais é o exemplo que deixam; o resto é com os filhos

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1. Amigos meus, com filhas, vivem os dramas dos pais-helicóptero. Elas crescem, namoram, casam. Mas o instinto do pai-macho é sempre o de proteger a filha-fêmea das garras de outros machos.

Não os critico. Entendo. Primeiro, eles projetam nos outros o que eles próprios, enquanto homens, são ou foram para as mulheres. Nada como um homem para conhecer outro homem.

E, depois, consigo imaginar-me no lugar deles. Tenho um filho. Durante 24 horas por dia, tenho que me controlar para não remover todas as pedras do seu caminho.

Se tivesse uma filha, e se ela por hipótese sofresse às mãos de um homem, eu seria obrigado a espancá-lo com requintes de malvadez.

Ilustração de um homem mais velho e uma jovem sentados frente a frente com uma mesa posta entre eles, a visão é lateral. Na mesa, há duas taças para martini e uma taça de sobremesa.
- Angelo Abu/Folhapress

Só depois do serviço feito, e já com a polícia no meu encalço, perguntaria ao moribundo: "A propósito: é mesmo verdade que você magoou a minha filha?"

Sofia Coppola conhece homens desses e resolveu filmá-los no seu "On the Rocks" (disponível na Apple TV). Dizer que é um filme perfeito seria um eufemismo. Qualquer filme com Bill Murray corre esse risco. Se juntarmos ao programa a atriz Rashida Jones, o prato está feito.

É a história de Laura, escritora, casada, com duas filhas. O casamento é feliz, ou parece feliz, mas já os antigos diziam: mãos ociosas são a oficina do diabo.

Laura, em bloqueio criativo, começa a desconfiar do marido. Quando partilha essas suspeitas com o pai, ele avança como um cavaleiro medieval, disposto a salvar a sua donzela. Como? Seguindo os passos do suspeito.

A primeira hora de "On the Rocks" é Bill Murray "vintage". O pai, debitando sabedoria sobre as relações entre os sexos, parece um cavalheiro da velha escola: no porte, nos gestos, nos gostos. E no cuidado com a filha, deplorando as alegadas infidelidades do genro.

Mas existe uma dissonância no comportamento do pai: aquilo que ele exige do genro não é propriamente o que praticou e pratica. Como exigir fidelidade e monogamia a alguém quando essas duas virtudes não foram praticadas lá em casa?

E até que ponto a hiperproteção do pai não é uma forma, ainda que inconsciente, de iludir o seu próprio currículo perante a filha?

"On the Rocks" é uma fábula moral, em tom ligeiro, sobre as responsabilidades últimas dos pais perante os filhos.

Entre essas responsabilidades, não está a atitude insana de tratar os filhos como se fossem propriedade nossa. Muito menos protegê-los do mundo e dos outros com paranoia asfixiante.

A grande responsabilidade é o exemplo que deixamos. O resto é com eles e com a vida que lhes pertence.

2. Joe Biden é o novo presidente dos Estados Unidos. Não é destino que se inveje. A América está dividida entre dois mundos que parecem irreconciliáveis. A pandemia não acabou, nem ameaça acabar tão cedo.

E Biden terá ainda que controlar a ala mais radical do Partido Democrata, que encara a sua vitória como uma espécie de tomada da Bastilha.

Seja como for, sempre gostei de Biden. Não por razões políticas, embora a sua moderação seja estimável para uma alma conservadora como a minha. Por razões pessoais. O caráter de um homem se mede perante a tragédia.

E quando nessa tragédia existe a morte de dois filhos, o pior dos castigos terrenos, é impossível não ver em Biden um dos últimos estoicos da vida pública americana.

Aliás, nessas semanas de campanha, não me limitei aos discursos de Biden (fracos) ou ao seu programa eleitoral (vago, demasiado vago). Também li as memórias que o próprio escreveu ("Promise Me, Dad: A Year of Hope, Hardship, and Purpose", Macmillan) sobre a morte do filho Beau, vitimado aos 46 anos por um câncer no cérebro.

Melhor dizendo: o livro não é apenas sobre o filho. É um relato sobre os 12 meses que mediaram entre o diagnóstico e a morte de Beau, período em que Biden foi obrigado a equilibrar a tragédia pessoal com a vice-presidência da administração Obama.

Não vou resumir aqui a experiência, porque ela é, em vários sentidos da palavra, intransmissível. Digo apenas que, lendo o calvário do católico Joe, entendi melhor o que Hemingway designava por "grace under pressure".

Sim, é uma forma de coragem, mas é mais que isso: é atravessar o inferno e conseguir sair vivo do outro lado. Respeito isso.

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