João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Casos de J. P. Cuenca e Monteiro Lobato revelam males: literalismo e censura

Repudiar o assédio judicial sobre essas odisseias faz parte de luta por uma sociedade adulta e livre

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O Brasil sempre me surpreende. Nos últimos dias, tenho acompanhado com interesse obsessivo as odisseias de J. P. Cuenca (vivo) e Monteiro Lobato (morto). Se o leitor não sabe do que estou falando, eu conto rápido.

O escritor J.P. Cuenca fez uma postagem nas redes em que afirmava: “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”.

Antigamente, uma pessoa medianamente ilustrada identificaria sem esforço a origem da paráfrase: ela pertence a Jean Meslier (1664-1729) e foi repetida, consoante os contextos, por nomes tão diversos como Diderot, Voltaire ou Garibaldi.

J. P. Cuenca é apenas o mais recente na fila e a metáfora é cristalina: ele deseja um Brasil sem Bolsonaros e sem a Igreja Universal —e não, como é óbvio, o enforcamento e o esventramento de um presidente e de um bispo.

Azar: parece que Cuenca está sendo processado em 21 estados por pastores evangélicos. O valor da indenização ascende a R$ 2,3 milhões.

Rosto de homens lado a lado com detalhes vermelho
Ilustração de Angelo Abu - Angelo Abu

O caso de Monteiro Lobato é igualmente interessante: nos últimos anos, e à semelhança do que sucede com Mark Twain, a obra do escritor brasileiro tem sido acusada de racismo. Que fazer?

Pessoalmente, discutir o assunto em liberdade, mas jamais mexer no conteúdo das obras. Quando muito, explicar apenas o contexto histórico, intelectual e mental em que os personagens de Monteiro Lobato foram criados.

A bisneta tem outras ideias: quer apagar o racismo pela exclusão ou alteração dos trechos mais problemáticos. Também aqui não há originalidade. George Orwell, no seu “1984”, já tinha atribuido ao personagem de Winston esse nobre trabalho: apagar e reeditar o passado, continuamente, de forma a que ele se ajuste às sensibilidades políticas do presente.

Se os casos de J. P. Cuenca e Monteiro Lobato prenderam a minha atenção é porque eles revelam, de forma quase perfeita, os dois principais males intelectuais do nosso tempo: o literalismo e a censura. Ou, simplificando, a vontade absoluta de respeitar as palavras e a vontade igualmente absoluta de as destruir. Obviamente, as duas estão ligadas.

O literalismo é a incapacidade de ir além do texto —ou, inversamente, a incapacidade de aceitar o poder libertador da metáfora. Não interessa se falamos de um literalista religioso ou ideológico.

O que interessa é o tipo de mundo que ambos desejam: um deserto de ideias, arte, ciência, criatividade ou ironia.

No caso do literalista religioso, isso é duplamente aberrante: a metáfora que ele recusa aos outros é a linguagem preferencial de Jesus na Bíblia. Ou será que ele encara as parábolas como literais, afastando-se assim do seu real significado?

Mas a destruição do pensamento não se faz apenas por literalismo. Também se exerce pela censura de obras literárias. Diane Ravitch, já há alguns anos, escreveu um livro (“The Language Police”) em que mostrava os sucessivos atos de vandalismo perpetrados nos Estados Unidos sobre autores canônicos.

O caso mais célebre pertenceu a Thomas Bowdler e a Henrietta Maria Bowdler que, nos inícios do século 19, resolveram fazer uma edição “familiar” das obras de Shakespeare. Sexo, profanidades ou religião foram jogados no lixo, de tal forma que o apelido dos censores virou verbo: “to bowdlerize”, nos dicionários contemporâneos, significa cortar, expurgar, destruir.

É uma escola que deixou herdeiros no século 21: conta Ravitch que as editoras de livros escolares, tuteladas por agências federais ou estaduais, evitam uma longa lista de palavras, estereótipos ou assuntos que estão proibidos pela sensibilidade histérica do tempo: “nigger”, “gypsy” ou “indian” são candidatos óbvios.

Mas também há casos cômicos: onde antigamente se lia “Adão e Eva”, deve ler-se “Eva e Adão” porque homens não têm prioridade sobre mulheres.

A bisneta de Monteiro Lobato julga que está fazendo um favor ao ilustre antepassado. Não está. Ela está abrindo a porta para que gerações futuras, dominadas pelas agendas do futuro, possam continuar o trabalho de corte e costura.

Como aceitar que um ser maléfico como o Saci só tenha uma perna? Não será isso um desrespeito pelos amputados? E etc. etc. —“ad infinitum”.

Repudiar o assédio judicial sobre J. P. Cuenca e a censura literária sobre Monteiro Lobato faz parte da mesma luta: a luta por uma sociedade adulta e livre.

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