João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho

Humanidade caminha para mundo dos imunes e submundo dos vulneráveis

Como sustentar que pessoas vacinadas contra a Covid-19 continuem em prisão domiciliária?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O dia que eu mais temia chegou: minha mulher está vacinada contra a Covid-19, eu não. Aliás, eu não sei quando estarei —fim do ano? Próximo ano? É indiferente. Ela, entrando em casa com uma coroa de rainha, foi buscar as malas e disse: “Meu bem, tente aproveitar a vida aqui em casa". "É isso que eu vou fazer lá fora. Adeus.”

Foi nesse momento que eu acordei, perturbado por meus sonhos de abandono. A minha senhora está vacinada, sim, mas num gesto de amor e sacrifício resolveu ficar na leprosaria.

Abençoada seja. Mas como negar que a humanidade caminha, cada vez mais, para dois planetas —o mundo dos imunes e o submundo dos vulneráveis?

Pensei no assunto quando lia sobre o programa israelense dos “crachás verdes”. Israel é caso de sucesso mundial na vacinação. E agora, para reabrir a economia e o país, exige que os cidadãos mostrem uma espécie de passaporte para provar que já foram vacinados (ou, em alternativa, que já tiveram o vírus e estão imunes). Sem passaporte, não há restaurantes, bares, academias ou sinagogas para ninguém.

Instintivamente, minha costela liberal reage com dor. E então relembro o famoso “princípio do dano”, popularizado por John Stuart Mill, e que funciona como um bom barômetro para as liberdades públicas. O Estado só deve interferir na liberdade dos indivíduos quando existe a possibilidade de dano para terceiros?

É um bom princípio, razão pela qual não me oponho ao uso obrigatório de máscaras: não é apenas a vida do sujeito que está em causa; são as vidas dos outros.

Mas as vacinas deveriam alterar esse cenário. Conferem proteção a quem as toma e, até ao momento, as variantes conhecidas do vírus parecem não cancelar essa proteção. A pergunta é inevitável: se a vacinação continuar a ser voluntária e eficaz, o ónus da responsabilidade não deve estar apenas nos indivíduos que decidem ou não tomá-la?

Infelizmente, não estou seguro sobre as premissas. Para começar, não sei até quando as mutações do vírus serão benevolentes. Sobretudo quando a resistência à vacinação pode criar as condições perfeitas para fortalecer o vírus. Nessas condições, a não vacinação pode representar um dano para terceiros.

Por outro lado, e por mais desconfortável que seja, a imagem de uma sociedade dividida entre imunes e vulneráveis, como sustentar que pessoas imunes devem continuar em prisão domiciliária?

E por que motivo as economias devem continuar fechadas quando uma parte da população pode começar a reverter essa ruína?

Esmagado pelas evidências, digo à minha mulher: “Não posso ser egoísta e prender você nessa masmorra". "Vai e viva!”

Ela me olha com preocupação psiquiátrica e, encolhendo os ombros, comenta apenas: “Não seja dramático e não se esqueça de usar a máscara quando sairmos". "Você ainda precisa, né?”

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.