João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Negros, trans e gays lideram hierarquia da opressão, mas e os judeus?

Não é irônico que o esquecimento deles nas 'políticas de identidade' seja exercido com argumentos da extrema direita?

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Você conhece a polêmica: de vez em quando, é anunciado na mídia que um ator heterossexual fará um personagem homossexual no cinema. Será isso um desrespeito — ou, em termos menos grandiloquentes, uma apropriação financeira indevida de um papel que deveria ser para um ator gay?

Eu acho que não, porque um ator é um ator. Aliás, pela mesma lógica, um ator gay jamais poderia representar um personagem hétero.

Mas esse não é o meu ponto agora. Meu ponto é outro: se você concorda que só atores gays podem ser personagens gays, será que o mesmo pode ser dito sobre os judeus? Será que só atores judeus podem interpretar personagens judeus?

Eu sei, eu sei: você nunca fez essa pergunta. Mas não é estranho que, no mundo da “política de identidade”, os judeus sejam os únicos que não aparecem no radar?

Essa perplexidade é formulada por David Baddiel em “Jews Don’t Count: How Identity Politics Fails One Particular Identity”, um livro publicado pelo Times Literary Supplement.

E Baddiel, com uma deliciosa mistura de humor e paranoia, dá um exemplo: John Turturro, ator ítalo-americano, é um rabino em “Complô contra a América”. Alguém lhe perguntou se isso não era bizarro —um ítalo-americano posando de judeu.

Turturro respondeu: “Eu me sinto um judeu honorário. Minha mulher é judia, meus filhos são judeus. Eu cresci em Nova York, sou basicamente judeu!”.

Agora vamos imaginar que um ator hétero defendia seu personagem gay dizendo: “Eu me sinto um gay honorário. Meu irmão é gay, meus filhos são gays. Eu cresci em San Francisco, sou basicamente gay!”. Será que essa resposta seria tolerada?

Concordo com Baddiel: na hierarquia da opressão, negros, trans ou gays ocupam os lugares cimeiros. Mulheres, muçulmanos, pessoas com deficiência vêm logo a seguir.

Mas onde estão os judeus, seguramente um dos grupos mais perseguidos de sempre?

Haverá razões para esse esquecimento. Alguém dirá, por exemplo, que os judeus não têm cor; ao contrário dos negros, eles são brancos e podem circular incógnitos pela sociedade gentia.

Outros, mais sofisticados, dirão que a hostilidade aos judeus não é aos judeus; é à religião dos judeus. Se toda religião é obscurantista, o judaísmo não é exceção.

Nenhuma dessas hipóteses é convincente para Baddiel, e com razão: primeiro, porque o antissemitismo persiste apesar da “branquitude” e, depois, porque em Auschwitz não havia distinção entre judeus que iam à sinagoga e judeus que eram ateus.

É preciso procurar outras explicações para a amnésia —e é aqui que o ensaio de Baddiel se torna pessoal: o autor é judeu e de esquerda. Um progressista, nas suas próprias palavras.

Mas ele não tolera que muitos progressistas não coloquem o antissemitismo no mesmo plano de outras fobias ou racismos.

Isso se explica, em primeiro lugar, com uma simples palavra: Israel. O raciocínio é conhecido: sim, o antissemitismo é um preconceito lamentável; mas o tratamento de Israel aos palestinos também não ajuda, certo?

A resposta de Baddiel é curta e grossa: “Eu quero que Israel se dane”. Ele não é israelense. É inglês. Se um negro americano é vítima de abuso policial nos Estados Unidos, será que alguém pode relativizar o crime pela forma como o Zimbábue trata a sua população branca?

Seria grotesco e francamente racista a redução das diferenças geográficas, culturais ou históricas à simples cor da pele. Como tolerar que o mesmo seja feito a cidadãos ocidentais que só por acaso são judeus? Que têm eles a ver com Israel e os palestinos?

Nada. Da mesma forma que um afro-americano está a milhares de quilômetros de distância — física, histórica ou existencial — de um zimbabuano.

Mas existe uma segunda explicação para a invisibilidade vitimária dos judeus entre os progressistas de esquerda: no velho esquema marxista, os judeus fazem parte das classes plutocratas. Eles são os opressores, não os oprimidos.

Os números não dizem isso: segundo a New World Wealth, 56,2% dos milionários no mundo são cristãos; 6,5% são muçulmanos; 3,9% são hindus; só 1,7% são judeus. Mas que interessam os números?

Meus alunos, todos os anos, ficam pasmos quando eu lhes digo que os judeus na Alemanha nazista representavam menos de 1% da população. Pela histeria genocida do velho Adolf, eles supunham que os judeus seriam metade ou até mais.

Eis a pergunta final de David Baddiel para os seus companheiros de estrada: não é irônico que o desprezo pelos judeus nas “políticas de identidade” seja exercido com argumentos típicos da extrema direita?

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