João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu Maratona

Documentário 'I Love You, Now Die', na HBO, é aula magna de ética aplicada

Nossa cultura dogmática adora respostas simples para vidas complexas

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Uma pessoa pensa que já tinha visto de tudo. Mas eis que assiste ao documentário “I Love You, Now Die: The Commonwealth v. Michelle Carter”, na HBO, e é obrigada a pensar outra vez.

O filme de Erin Lee Carr revisita um caso que, anos atrás, chamou a minha atenção na imprensa americana. É a história de Michelle Carter e Conrad Roy, dois jovens de 17 e 18 anos, respectivamente, que desenvolveram uma relação amorosa, digamos assim, quase exclusivamente por celular –só estiveram juntos umas cinco vezes.

Havia um problema, porém: Conrad sofria de depressão, tinha recorrentes pensamentos suicidas e acabou se matando no carro por inalação de fumos tóxicos.

Quando a polícia começou a investigar o funesto ato, descobriu no celular de Conrad as conversas que ele teve com Michelle durante dois anos. A jovem, pelo visto, tinha incitado Conrad a se suicidar com particular insistência. Michelle acabou sendo acusada de homicídio involuntário.

O documentário é de uma inteligência jornalística raramente vista em produtos do género. Sobretudo ao mostrar como as aparências iludem: escutando familiares, policiais, jornalistas e psiquiatras, Erin Lee Carr permite a reconstrução possível das cabeças de dois jovens problemáticos, entre aspas –é eufemismo– nesses tempos de hiperconexão.

A forma quase literária como a diretora vai revelando as mensagens trocadas é um primor narrativo.

Mas aquilo que me despertou para o caso, anos atrás e agora, foi a pergunta fundamental: será que as palavras matam? Ou, apesar das palavras, são os indivíduos que escolhem seus atos?

Não falo da dimensão moral do caso, atenção. Incitar alguém ao suicídio sempre me pareceu de uma imoralidade total. Se vemos alguém numa ponte prestes a saltar e vamos lá dar uma força, o ato é de uma malignidade que dispensa comentários.

O ponto é criminal. Devo ser responsabilizado por homicídio involuntário se nada fizer para evitar a morte de outra pessoa? Mais: devo ser responsabilizado se até promover, por palavras, essa morte?

A minha resposta tende a ser afirmativa, especialmente quando a outra pessoa se encontra privada das suas plenas faculdades.

Retornando ao exemplo da ponte, o suicida até pode argumentar comigo que a sua vida, por razões várias, é insuportável. O seu discurso pode ser fluente e o seu raciocínio, cristalino.

Partirei sempre do pressuposto que a sua racionalidade é questionável –e jamais darei o empurrão verbal.

Mas o que fazer quando essa racionalidade é diminuta para ambas as partes?

E qual a diferença entre a simples passividade da testemunha, a instigação ao ato e a interferência direta para impedir que o outro mude de ideias durante o processo? Serão a mesma coisa?

E, já agora, que obrigações temos para com os outros?

O documentário de Erin Lee Carr é uma aula magna de ética aplicada, navegando por todas essas questões sem oferecer respostas simplórias ou consoladoras. A própria sentença do juiz, que não revelo, exibe uma sofisticação filosófica que é o contrário da nossa cultura infantil.

Exato: uma cultura dogmática que adora respostas simples para vidas complexas.

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