João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Escrita inclusiva não passa de uma fantasia da indústria de justiça social

Por outro lado, essa mesma fábrica blindou-se à crítica, desqualificando moralmente incréus racistas, machistas e homofóbicos

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Assim vai o mundo: algumas universidades britânicas estão dispostas a permitir erros ortográficos, gramaticais e de pontuação aos alunos. A ideia é promover uma “escrita inclusiva”, o que significa que grupos marginalizados, incapazes de escrever uma frase com sujeito, predicado e complemento direto, não devem ser penalizados por isso.

A Universidade de Hull, outrora casa de Philip Larkin, é explícita: o que se entende por “escrita correta” é, na verdade, um produto da Europa do norte e da cultura branca e elitista. Preservando-se um mínimo de inteligibilidade (até quando? E, já agora, não será isso também elitista?), o que conta é a forma autêntica como o aluno se expressa.

ilustração abstrata
Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho de 20 de abril de 2021 - Angelo Abu/Folhapress

Quando li a notícia, confirmei uma vez mais o caminho de ruína que as humanidades escolheram há muito. Digo humanidades e não ciências naturais e exatas porque essas últimas não podem brincar —peço desculpa, “desconstruir” noções arcaicas de verdade.

Sim, de vez em quando alguém fala em “matemática inclusiva” e outras fantasias do gênero.

Mas, no mundo real, a “matemática inclusiva” levaria à queda de pontes; a “física inclusiva” levaria à queda de aviões; e se o leitor, no bloco operatório, soubesse que o seu cirurgião era versado em “anatomia inclusiva”, o melhor era tentar fugir dali antes que a anestesia começasse a fazer efeito.

Isso, claro, se tivesse a sorte de ter anestesia —uma invenção elitista e branca, que pode ser facilmente substituída por dois búzios sobre os olhos.

Mas a notícia também mostra outra coisa: o longo caminho que o pós-modernismo fez desde a década de 1960 até nossos dias. Um livro recente de Helen Pluckrose e James Lindsay, intitulado “Cynical Theories”, ou teorias cínicas, ajuda a compreender essa aventura.

No início, a proposta pós-moderna era uma confissão de desencanto, argumentam os autores. As metanarrativas —científicas, religiosas, ideológicas— tinham falhado com estrondo no terrível século 20. Donde, o que restava?

Não, com certeza, aquele ceticismo saudável e anti-utópico, que toma todo o conhecimento por provisório e constitui a base do progresso.

O ceticismo tornou-se radical e cínico. A verdade não era difícil e provisória; era impossível e relativa. E, adicionalmente, dependia geneticamente de um sistema de poder e hierarquia onde só os poderosos têm vez.

Confesso que sempre li com humor essa literatura conspiratória e ficcional. Que, logicamente, se refuta a ela própria —se tudo se abre à tal desconstrução, não há nenhum motivo para deixar a proposta pós-moderna a salvo.

O problema, dizem Pluckrose e Lindsay, é que o novo pós-modernismo entendeu esse calcanhar de Aquiles e, na virada do milênio, agiu em conformidade.

Não bastava só a atitude lúdica e essencialmente descritiva da primeira onda pós-moderna. Era preciso ir mais longe, corrigindo na prática o que havia sido denunciado pela teoria. A indústria da “justiça social”, com suas mil ramificações acadêmicas, nasceu desse imperativo: reinterpretar e refazer o mundo através da lente do ativismo.

Por outro lado, essa mesma indústria blindou-se à crítica, desqualificando moralmente os incréus —racistas, machistas, homofóbicos et cetera— ou até intelectualmente —ignorantes sobre os textos canônicos etc.

No fundo, nada de novo. Apenas um retorno ao período medieval, em que a discórdia era tratada como heresia. A Terra girava em torno do sol? Quem afirmava tal coisa era diabólico e, além disso, não
conhecia a Bíblia. Fim de papo —e fogueira com ele.

Igual tratamento deve ser ministrado a quem duvida da “fragilidade branca”, da “opressão epistêmica” ou da “interseccionalidade”.

Porque a Verdade, a única Verdade tolerável, é que tudo se resume às assimetrias de poder. E, se assim é, nada justifica que se aceite como único conhecimento válido o que é produzido pela cultura dominante. Os marginalizados também têm direito às suas epistemologias e hermenêuticas.

No limite, esse pluralismo radical inclui até o direito de não se ser compreendido (“privacidade hermenêutica”).

Eis o futuro: por enquanto, aceitam-se erros ortográficos, gramaticais; a prazo, o aluno poderá comparecer ao exame e, em nome da “privacidade hermenêutica”, ter nota máxima pelo silêncio ou pelo delírio.

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