João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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A intolerância perante a intolerância transformou nazistas em celebridades

Defender a liberdade de expressão é impedir que as melhores intenções abram a porta aos piores intencionados

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Nos debates sobre a liberdade de expressão, há sempre um sábio que cita a Alemanha nazista. Raciocínio do sábio: se a Alemanha tivesse leis que banissem discursos de ódio, jamais os nazistas teriam tido a chance para espalharem as suas mensagens sinistras.

A conclusão do sábio é muito simples: os nazistas subiram ao poder porque a tolerância perante a intolerância cavou sua própria sepultura.

É um pensamento interessante, que só peca por ser historicamente errado. A República de Weimar proibia o “discurso de ódio”, para usar a expressão da moda. E vários nazistas famosos, como Joseph Goebbels, foram processados por proclamações antissemitas.

Um longo teclado
Ilustração de Abu para coluna de João Pereira Coutinho, publicada na Folha, em 7 de junho de 2021 - Abu

Mais: quando olhamos para jornal nazista Der Stürmer, ele foi repetidamente confiscado pelas autoridades. O seu editor, Julius Streicher, foi duas vezes preso. Resultado?

O partido nazista, um grupelho desprezível em inícios da década de 1920, foi ficando cada vez mais célebre por causa desses processos. Quando a Grande Depressão chegou, Hitler e sua gangue estavam prontos para subir no palco.

Se existe uma moral nessa história, não é que a tolerância perante a intolerância acabou com a democracia.

Paradoxalmente, a lição é outra: a intolerância perante a intolerância fez com que os nazistas se tornassem célebres —e, aos olhos de certos marginais como eles, vítimas da perseguição política.

Eis uma das histórias que Andrew Doyle relembra no seu “Free Speech and Why It Matters” (Constable, 144 págs.): o tempo censório em que vivemos acredita que, pela supressão de certas ideias (nas universidades, nos jornais, na internet etc.), os seus autores serão devolvidos ao esquecimento.

Fatalmente, o que acontece é a consagração desses autores, que se transformam em vítimas —ou melhor, em mártires da liberdade de expressão.

Mas o ensaio de Doyle, um dos mais inteligentes que li sobre a matéria, oferece outras lições aos novos censores. Sobretudo aos que acreditam que pela punição do discurso livre será possível defender os direitos de certos grupos ou minorias. Perante essa fantasia, o autor formula a questão fatal: será que os direitos das minorias, hoje, são mais bem defendidos em países que restringem a liberdade de expressão?

Ou, pelo contrário, esses direitos são mais bem preservados em regimes que levam a sério a liberdade de expressão?

Pessoalmente, tenho poucas dúvidas: ser transexual nos Estados Unidos, onde existe a Primeira Emenda, é mil vezes preferível a ser trans no Irã ou na Arábia Saudita.

Mas o ponto não é só empírico, é também histórico: foi a liberdade de expressão que deu visibilidade e legitimidade à luta pelos direitos das minorias. Se essa liberdade não existisse, não haveria visibilidade, nem legitimidade, nem sequer direitos para ninguém.

É possível argumentar que certas formas de discurso podem ofender e até violentar sensibilidades diversas. Casos de difamação, calúnia ou incitamento à violência podem e devem ser sancionados pela lei.

O que não é possível nem legítimo é atribuir ao Estado a capacidade de suprimir certas ideias ou opiniões simplesmente porque alguém, algures, as considera repugnantes e uma fonte de desconforto ou sofrimento.

Em primeiro lugar, pessoas diferentes tendem a sentir repugnância, e desconforto, e até sofrimento por coisas diferentes. Para usar o exemplo paródico de Andrew Doyle, eu todos os anos sinto repugnância, desconforto e até sofrimento na hora de pagar impostos. (Não é paródia, não, é verdade.)

Mas isso não me dá o direito de bombardear o Ministério da Economia ou de sequestrar o ministro. O mundo, na sua vasta imperfeição, não existe para me fazer as vontades.

Por outro lado, confiar a um governo uma espécie de política de gosto sobre o que pode ser dito ou escrito na arena pública parte sempre do pressuposto otimista de que as causas do momento, como a justiça social ou a política de identidade, serão eternas.

Podem não ser. E uma vez oferecida a chave da repressão legal, futuros governos podem encontrar novos e imprevistos alvos. Um exemplo bem lembrado por Andrew Doyle: em 1936, o partido trabalhista britânico fez aprovar legislação para proibir as marchas fascistas de Oswald Mosley.

Na década de 1980, Margaret Thatcher usou essa mesma legislação para prender os mineiros em greve.

Moral da história?

Defender a liberdade de expressão é, antes de tudo, impedir que as melhores intenções abram a porta aos piores intencionados.

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