João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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'Os Melhores Anos da Nossa Vida' assalta a memória e trai os amantes

Novo filme de Claude Lelouch revisita personagens de clássico na velhice e o resultado oscila entre o desinspirado e o grotesco

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Devo a Claude Lelouch duas dádivas: o rosto de Anouk Aimée e a bossa nova. Ambas foram importantes na minha educação sentimental porque apareceram na altura certa: o início da adolescência, quando assisti pela primeira vez ao clássico “Um Homem e uma Mulher” (1966).

Da bossa nova falarei um dia. Hoje, fico-me por Aimée, a Anne do filme, por quem Jean-Louis (o sempre admirável Jean-Louis Trintignant) se apaixona. Por quem eu me apaixonei: Anne tinha aquele tipo de beleza que é raríssimo encontrar –uma beleza habitada pela inteligência. Como resistir? Precisamente: não resisti.

Só mais tarde, revendo o filme, descobri por trás da simplicidade aparente que o título sugere o tema mais importante do filme: o temor da felicidade.

Na adolescência, ter medo da felicidade era um oxímoro. Não é para gente adulta, como Anne ou Jean-Louis, ambos viúvos, ambos com filhos pequenos, ambos marcados pelo passado para se permitirem ter um futuro.

Esse medo existe em Anne, no seu sorriso simultaneamente nervoso e sardônico, na hesitação dramática em receber Jean-Louis na sua vida.

Mas está também nele: os monólogos interiores que o personagem partilha com o auditório são a refutação de que os machos não tremem. Quando confrontados com a possibilidade séria de amor verdadeiro, os homens fazem lembrar uma velha frase de Churchill sobre os americanos: eles farão sempre a coisa certa, depois de terem esgotado todas as outras opções.

Claude Lelouch, coberto de glória por “Um Homem e uma Mulher”, nunca mais voltou a acertar no alvo com o mesmo requinte.

E quando, duas décadas depois, revisitou Anne e Jean-Louis em novo filme (“Um Homem e uma Mulher: 20 Anos Depois”), o exercício soava falso, derivativo, narcísico, sempre com aquele excesso formal e, sobretudo, musical que se tornou na assinatura do diretor. Numa palavra: brega. Só os atores salvavam o desastre.

Pois bem: Lelouch tem que agradecer novamente aos atores. “Os Melhores Anos da Nossa Vida” filma Anne e Jean-Louis na velhice e o resultado oscila entre o desinspirado e o grotesco.

Jean-Louis, depois de uma vida de excessos, vive numa casa de repouso, onde a memória é intermitente. O filho, Antoine, decide então procurar Anne para que ela visite o velho amante. Anne é das poucas memórias que Jean-Louis conserva intactas.

Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée em cena do filme "Um Homem, Uma Mulher", de Claude Lelouch
Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée em cena do filme "Um Homem, Uma Mulher", de Claude Lelouch - Divulgação

Anne acede ao pedido, apesar das mágoas passadas, e o encontro acontece: ele, semidemente, falando dela sem perceber que fala com ela. E Anne, carinhosa e piedosa, disposta a revisitar a história de ambos em turismo geriátrico: a praia onde caminharam, o quarto de hotel onde passaram a primeira noite.

Pelo meio, ainda há tempo para conversas sobre o fluxo urinário (dele) e sequências enxertadas do filme original, estilo videoclip, que só servem para mostrar o abismo entre o Lelouch de 1966 e o atual.

A voz de Calogero (cantando “Mon Amour”) é o toque final e redundante, como se os versos pudessem insuflar no filme uma vaga sombra de romantismo.

Como cantava Jacques Brel em “La Chanson des Vieux Amants”, é normal que os velhos amantes guardem entre si cada vez menos mistérios. Mas não é preciso chegar a este strip-tease patético.

Salvam-se os atores, repito: Anouk Aimée, impecável e impecavelmente bela nos seus 89 anos; e Trintignant, sonhador e insolente (“comme d’habitude”), recitando Verlaine e Boris Vian na impossibilidade de se levantar da cadeira de rodas e fugir do set.

O filme de Lelouch é um assalto à memória e uma traição aos amantes, vendendo a ilusão paternalista de que os mais belos anos de uma vida são aqueles que ainda não foram vividos, como escreveu Victor Hugo, citado em epígrafe.

Mas foram, sim: em 1966, no mar de Deauville e nas estações ferroviárias de Paris, quando Anne e Jean-Louis se abraçaram.

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