Parece que a revista inglesa Economist está preocupada com a “esquerda iliberal". Uma preocupação que mereceu capa, editorial e reportagem longa. Segundo a revista, houve um tempo em que o liberalismo defendia o debate livre, a dignidade individual e a existência de governos limitados como condição de progresso.
Não mais. Hoje, a “esquerda iliberal” está no mesmo nível da “direita iliberal”: sectária, intolerante, de uma pureza ideológica extrema —e ferozmente contra a liberdade de expressão.
Aliás, para explicar as raízes intelectuais do fenômeno, a Economist cita Herbert Marcuse e a sua concepção de “tolerância repressiva”.
Fez bem. Para entender as guerras culturais do nosso tempo, o ensaio de Marcuse —“Repressive Tolerance”, de 1965— é o melhor ponto de partida.
Dizia ele que o “mercado das ideias”, tão caro aos liberais clássicos, não passava de uma farsa. De que vale ter esse mercado quando ele serve para a promoção de ideias autoritárias que excluem as causas progressistas?
O progresso depende da exclusão de ideias dissonantes da arena pública. Caso contrário, os mais fracos não têm vez.
Existe uma forma simples, e historicamente comprovada, de responder às teses de Marcuse: lembrando que as causas progressistas dos últimos dois séculos só foram possíveis pela existência de um “mercado de ideias” livre onde as posições mais heterodoxas puderam ser defendidas e escutadas.
A abolição da escravatura; os direitos das mulheres; a defesa cívica de minorias sexuais ou étnicas precisou desse espaço para florescer.
Se os mecanismos de repressão que Marcuse e seus herdeiros propõem já existissem no passado, as senzalas ainda estariam lotadas, as mulheres ainda estariam em casa e as minorias sexuais ainda estariam no armário.
Isso não é apenas uma constatação de fato. É um aviso sobre o presente —e o futuro.
No presente, o crescimento da censura iliberal —nas universidades, na mídia, nas artes etc.— permite questionar que tipo de causas não estão sendo escutadas; que tipo de injustiças não estão merecendo atenção; que tipo de violências permanecem na sombra porque a sensibilidade cultural dominante não tolera qualquer desvio da sua cartilha.
Será preciso lembrar que a sensibilidade cultural dominante dos últimos dois séculos defendia a escravidão, a inferioridade das mulheres e a discriminação dos LGBTQIA+?
Finalmente, há um aviso para o futuro. Os herdeiros de Marcuse acreditam que a repressão “em nome do bem” será sempre exercida por aqueles que estão do lado certo da história.
Quanta ingenuidade! Se a história ensina alguma coisa é que o “bem” é sempre circunstancial. E que aqueles que o defendem com instrumentos censórios estão apenas a criar as armas concetuais e até institucionais que poderão ser usadas contra eles.
Parafraseando a frase de Lenin, nunca devemos vender a corda com que um dia seremos enforcados.
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