1. Jair Bolsonaro anda obcecado com Portugal. Quase todos os dias há uma notícia em terras lusas sobre o amor do presidente pela santa terrinha.
Começou com uma acusação: “Eu vi um deboche de uma televisão portuguesa em cima da gente”, afirmou Bolsonaro. Tudo por causa da defesa da cloroquina e de outros fármacos sem comprovação científica contra a Covid-19.
Agora, já vai em apocalipse: a crise e a inflação não existem apenas no Brasil. Em Portugal, os supermercados estão vazios e não há gasolina nos postos de combustível. “É a quinta pior crise em 150 anos”, disse Bolsonaro.
Não sei onde o presidente vai buscar essas informações. Imagino que seja sacanagem de um assessor, só para provocar um incidente diplomático entre os dois países. Mas posso repor a verdade?
Ninguém ri da paixão de Bolsonaro pela cloroquina. Na verdade, muitos choram, outros rezam e tem gente que chora e reza, ao mesmo tempo.
Eu próprio, com meu espírito satânico, já experimentei em público fazer piada com o assunto, sobretudo quando vejo alguém tossindo nos cafés de Lisboa. “Deseja um pouco de cloroquina, minha senhora?”
A reação é semelhante a um convite para práticas sadomasoquistas com um porco-espinho. Não admira: Portugal foi o primeiro país do mundo a vacinar 85% da população.
Isso não significa que não temos fãs da cloroquina ou negacionistas da Covid-19. Temos. Infelizmente, são tão raros que só as famílias mais ricas podem adotá-los para mostrar às visitas como espécies exóticas.
E o apocalipse?
Bolsonaro tem alguma razão: a falta de certos alimentos tem levado alguns patrícios a trocar a coxa de galinha por um equivalente humano.
Mas o canibalismo não é prática geral e, em certos mercados, ainda é possível comprar um vira-lata por bom preço.
O problema é que esses mercados ficam longe e, perante a escassez de combustível, só quem tem cavalo ou jumento pode sonhar com certos pratos. Muitos não chegam ao seu destino e, vencidos pela fome, acabam comendo o cavalo (ou o jumento).
De resto, só uma notícia envolvendo Jair Bolsonaro foi comentada em Portugal com alguma insistência: as piadas de cariz sexual e as referências jocosas aos lusitanos que Bolsonaro terá expelido quando recebeu Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, em agosto passado.
Posso assegurar que ninguém ficou ofendido. Nem o nosso presidente. Pelo contrário: depois desse encontro, Marcelo Rebelo de Sousa discursou na ONU e exigiu um lugar permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da organização.
A ideia, segundo fontes ouvidas pelo cronista, é que a partir de 2022 o próprio Bolsonaro esteja permanentemente em Nova York, desempenhando um papel mais adequado aos seus talentos: divertir a diplomacia internacional, que bem precisa de relaxar um pouco.
2. Depois da entrega dos prêmios Nobel, um psicólogo do King’s College de Londres formulou uma pergunta em artigo para o site UnHerd: “Será que o inventor da lobotomia deve ser removido da lista de premiados com o Nobel da medicina?”.
Aconteceu em 1949: o português Egas Moniz (1874-1955) inventou o procedimento. Outros usaram e abusaram dele no tratamento de doenças psiquiátricas. Os resultados foram sinistros, exceto para quem gosta da série “The Walking Dead”.
O autor do artigo, Stuart Ritchie, reconhece duas coisas, porém.
Primeiro, que Egas Moniz não inventou apenas a lobotomia; a sua angiografia cerebral, uma espécie de raio-X dos vasos sanguíneos do cérebro que ainda hoje é usada, foi provavelmente a contribuição mais importante do médico luso para a ciência (e merecedora do Nobel).
Por outro lado, a história da medicina é um cortejo de horrores: procedimentos revolucionários para uma época podem ser vistos como aberrantes na época seguinte.
Como exigir a um homem nascido no século 19 que ele tivesse o grau de conhecimento técnico e científico que existe no século 21?
Claro que, em certos casos, o problema é o inverso: homens do século 21 que, na hora do tratamento médico, continuam no século 19.
Resta a consolação de saber que é bastante improvável que a academia sueca acabe premiando Bolsonaro e a defesa da cloroquina.
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