João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu União Europeia

Direita radical trata vacinas e ciência como uma grande conspiração

Com uma visão equivocada de liberdade individual, ela se põe ao lado da irracionalidade e atrapalha o combate à pandemia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Na Europa, parece que é uma regra: onde a direita radical governa, há mais casos de Covid-19 e uma maior resistência à vacina. Estranho?

Deveria ser. Nicholas Farrell, autor de uma razoável biografia sobre Benito Mussolini, escrevia há tempos na Spectator que a resistência às medidas sanitárias mandatadas pelos governos é compreensível em libertários. Eles, afinal, nunca confiaram na tutela do Estado e defendem uma versão radical de liberdade individual.

Mas que dizer dos fascistas? Não são eles autoritários?

Não deveriam eles obrigar a população a obedecer aos ditames do poder? Como explicar "fascistas libertários", uma contradição nos termos?

O caso é especialmente misterioso quando sabemos que, na Alemanha nazista, a vacinação era compulsória (mas apenas para os alemães; as "raças inferiores" não mereciam esse privilégio).

Entendo as perguntas. Também entendo as respostas: para Farrell, uma mistura de desconfiança diante das farmacêuticas e um certo gosto por medicinas alternativas pode explicar a resistência da direita radical aos progressos da medicina moderna.

Por mais válidas que sejam essas explicações, desconfio que não sejam suficientes. É preciso escavar mais fundo para achar o espírito da nova direita radical. E não há forma de fazer isso sem falar da velha direita.

Esse, pelo menos, é o objetivo de Matthew Rose no livro "A World After Liberalism: Philosophers of the Radical Right". Tenho lido a obra de Rose, que procura cartografar os autores canônicos que têm influenciado a nova direita radical em todo o mundo.

Esqueça Hayek, Friedman ou Oakeshott. O pessoal tem uma preferência cada vez maior por Oswald Spengler, Julius Evola ou René Guénon.

Engraçado: conheço os três. E nunca esperei que um adulto, ou até um jovem que não seja completamente atrasado, pudesse levar a sério esse trio de charlatães.

Engano meu. Esses nomes, a que podemos juntar Alain de Benoist e o imensamente repulsivo Francis Yockey, têm legado à direita radical certos valores perenes.

A sensação de declínio irreversível é um deles. Corrijo. Não é declínio, é catástrofe iminente. Já tinha reparado: falamos com um exemplar da espécie e o mundo é percebido como uma luta final entre os justos (eles) e os decadentes.

Além disso, há na nova direita radical um culto da irracionalidade e do tradicionalismo, entendidos como fontes privilegiadas de conhecimento, que obviamente desautoriza a ascendência dos especialistas.
Não admira que, nesse abismo mental, a ciência e a técnica sejam vistas em tons conspiratórios, como armadilhas de entidades multinacionais para controlar mentes e corpos.

Existe ainda um traço comum a essa direita que, pessoalmente, não me espanta, mas talvez possa espantar certos leitores apressados: ela não se limita a suspeitar da razão, do iluminismo ou da ciência.

Também suspeita do próprio cristianismo, entendido como berço dos valores liberais. Isso, você leu bem: por mais violentas que tenham sido as batalhas entre os poderes temporal e espiritual, como negar que o cristianismo revolucionou a moralidade antiga ao pôr o indivíduo (e a sua consciência) no centro do palco?

Noções de autonomia, igualdade ou dignidade da pessoa humana, que os autores liberais secularizaram a partir dos séculos 15 e 16, na verdade nasceram muito antes. Ou o leitor pensa que "direitos naturais" foram inventados pelo senhor John Locke?

A nova direita radical, tal como a antiga, despreza esse patrimônio, talvez por entender que ele constitui um limite ao poder nu e cru.

Ilustração representando um senhor com a máscara sobre os olhos
Ilustração publicada em 6 de novembro de 2021 - Angelo Abu

Ou, como escreve Matthew Rose, um dos fenômenos mais desconcertantes da alt-right nos Estados Unidos é a forma como ela condena o cristianismo, e sobretudo o catolicismo, não tolerando o fetichismo pela democracia liberal e pelos direitos humanos das igrejas americanas.

Moral da história? Quando a direita radical marcha contra as vacinas e contra as medidas de confinamento, ela não está preocupada com a liberdade individual, com o futuro da economia ou até com a melhor forma de enfrentar uma pandemia. Essas são preocupações dos libertários, não dos reacionários.

Para a direita radical, a luta contra vacinas é apenas a variação de um tema mais vasto: a recusa total da modernidade e dos seus frutos decadentes.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.