João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Quem não sabe distinguir piada de ofensa não está pronto para sociedade

Ver um ator indicado ao Oscar agredindo humorista por causa de piada representa novo patamar na história da cerimônia

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Como todo mundo, pasmei com o tapa de Will Smith em Chris Rock. No Oscar, já houve de tudo: um homem pelado correndo no palco, uma atriz vencedora que tirou os sapatos na hora de receber o prêmio, alegados defuntos do momento "in memoriam" que estavam vivos.

Mas ver um ator indicado ao Oscar agredindo um humorista por causa de uma piada representa um novo patamar na história da cerimônia.

Nada contra, entenda: se a violência é a melhor forma de tentar ressuscitar o Oscar, quem sou eu para reclamar?

Aliás, nesse quesito, concordo com Anthony Lane, que propôs na "New Yorker" que os atores indicados passassem a agredir-se no momento em que é anunciado o vencedor. Sempre é melhor que sorrisos amarelos e aplausos forçados.

Acontece que o meu pasmo continuou (e até aumentou) nos dias seguintes. Sobretudo quando li reações de tolerância ao caso que podem ser resumidas em três escolas de "pensamento" (digamos assim).

A primeira escola, que explodiu nas redes sociais, optou pela "masculinidade tóxica" de Will Smith. Confrontado com uma piada sobre a alopecia da mulher, Will sentiu dentro dele o demônio dessa masculinidade e, como um autômato sem cérebro, levantou-se da cadeira e agrediu o outro.

É uma boa hipótese. Perigosa, também: quando atribuímos as culpas de atos reprováveis a forças que o indivíduo não controla, estamos a absolvê-lo de qualquer responsabilidade moral ou criminal. Estamos a torná-lo inimputável.

Will Smith agrediu porque, ao ser dominado pela "masculinidade tóxica" que a sociedade produz, ele é o primeiro dos agredidos.

Eu pergunto: será que uma explicação dessas também serve para a violência doméstica? Imaginemos que Will Smith tinha agredido a mulher, não Chris Rock. Haveria vozes compreensivas a exigir menos intolerância porque Will, no fundo, também era vítima?

A segunda escola, personificada na jornalista Tayo Bero no "The Guardian", preferiu o racismo. Os brancos e os negros reagiram à agressão de forma excessiva porque foi um negro o agressor.

Os brancos, na sua hipocrisia, esqueceram-se de outros momentos do Oscar em que foram os brancos a fazer tristes figuras (em 1973, parece que John Wayne tentou agredir uma nativa americana que discursava em nome de Marlon Brando, acusando Hollywood de racismo nos filmes de índios e caubóis).

Os negros, esses mostraram-se horrorizados porque tinha sido um deles a "envergonhar a família" numa festa tipicamente de brancos.

Os argumentos são patéticos –e, além disso, esquecem-se do óbvio ululante: a vítima também era negra. Como sustentar que os brancos reagiram com indignação porque são racistas quando, ironia das ironias, foi um negro o agredido?

Sugestão: talvez o horror que a cena despertou não tenha cor. Talvez o horror seja apenas uma reação saudável à violência bruta. Mais ainda: à violência bruta e impune que só o privilégio permite.

Será preciso lembrar que, depois do ataque, Will Smith se recusou a abandonar a cerimônia –e até furou a noite em danças e festejos?

Finalmente, a terceira escola: o humor tem limites. Chris Rock fez piada com uma doença autoimune. Teve o que mereceu.

A lógica funciona –entre crianças. Nos adultos, é mais difícil de engolir, embora eu veja aqui uma carreira: como o meu cabelo já não é o que era, espero compreensão universal quando eu sair esmurrando por aí.

Deixemos de lado o fato de Jada Pinkett Smith, a mulher de Will, ser a primeira a tratar da sua condição com descomplexada leveza –e em público.

O problema é outro: quem não sabe distinguir uma piada de uma ofensa e uma ofensa de um dano tem de questionar primeiro se está preparado para viver em sociedade.

Will Smith, manifestamente, não está. E você, leitor?

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