Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Obrigado, caminhoneiros

Num gesto admirável de sacrifício, eles cortaram nosso combustível, nossos remédios e nossos alimentos

​Em meio ao lamaçal da vida pública brasileira, há momentos em que mesmo o observador mais cínico tem que dar o braço a torcer. O povo unido por um Brasil melhor; foi o que vimos neste episódio heroico da greve dos caminhoneiros. Fiquei tocado com o patriotismo da classe.

Sofrendo, praticamente todos os brasileiros estão. Mas só os caminhoneiros foram capazes de transformar esse sentimento num movimento maior. Quando chegou a hora da decisão difícil, não titubearam: num gesto admirável de sacrifício, eles cortaram nosso combustível, nossos remédios e nossos alimentos.

Há muito mais em jogo do que o preço do diesel. A revolução é contra a classe política enquanto tal, vista como podre até a alma. A corrupção é o mecanismo que a move. Ela existe, hoje, para se perpetuar no poder e proteger os próprios privilégios, pagos pelo resto da sociedade. Contra ela, vale tudo.

Haverá algo mais belo que o povo nas ruas e nas rodovias, sem lei e sem líderes, dando vazão irrestrita à própria vontade e ameaçando não só as instituições, mas o próprio tecido social? Isso só pode dar coisa boa. É por isso que as lideranças mais responsáveis do Brasil competem para surfar essa onda.

No apoio aos caminhoneiros, Bolsonaro e Boulos falaram com uma só voz. Esquerda e direita deram as mãos. Afinal, a greve é #ForaTemer; e é também pela intervenção militar. O caminhoneiro é o manifestante perfeito para todas as nossas ideologias: para a esquerda, é trabalhador; para a direita, cidadão de bem; para os liberais, empreendedor. Não há idealismo que não saia edificado.

Confesso que tive um momento de dúvida: será que colocar milícias armadas em bloqueios na estrada para impedir que comida chegue às cidades é um ato democrático? E propor que o Exército se volte contra o Poder Executivo? Mas é claro que sim; todo poder emana dos caminhoneiros.

Uma revolução pode se dar de muitas formas. Uma é derrubando o Estado e colocando em seu lugar paladinos da Justiça e da ordem. Outra é receber um dinheirinho no bolso, pago pelo resto da sociedade. O governo, como era de se esperar, cedeu. 

A conta do patriotismo dos caminhoneiros será de pelo menos R$ 5 bilhões. Se vier também o corte de impostos, serão mais R$ 13,5 bilhões. É um presente do povo para o próprio povo. 

Como diz o nome de um dos grupos de WhatsApp dos grevistas, “#somostodoscaminhoneiros”, embora alguns sejam mais caminhoneiros do que outros...

 

Com essa conquista da cidadania e dos direitos, não seria uma boa hora de parar com os bloqueios e deixar combustível e comida voltarem aos mercados, estancar a sangria da agricultura, da indústria e dos serviços? Até seria, mas uma minoria pegou gosto por essa história de salvar o Brasil.

Dizem que não vão sair. Não é mais por R$ 0,46; as pautas agora incluem também —além do golpe militar— baixar o preço da gasolina e do gás de cozinha. O próximo passo é exigir que todos os bens e serviços sejam gratuitos. Estamos às portas da utopia.

Obrigado, caminhoneiros. Obrigado por usar nossas vidas como moeda numa grande chantagem nacional. É assim que se constrói um país melhor. Outros setores aprenderam a lição. Os petroleiros já declaram greve para amanhã. Afinal, eles também merecem salvar o Brasil.

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