Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

O aborto não foi criminoso; o estupro e os protestos, sim

Conservadores devem condenar espetáculo cruel na porta do hospital

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Não é a primeira vez que uma criança é estuprada, engravida e procura um aborto no Brasil nem será a última.

Mas a cada nova ocorrência, a reação social fica mais nociva. A situação, que já é trágica por si só, ganha contornos ainda mais cruéis quando o moralismo seletivo e a falta de compaixão resolvem se intrometer.

Um desses algozes previsíveis é a Igreja Católica. Realizado o aborto, lá vem a notícia: todos os envolvidos —exceto a criança, por sua idade— estão automaticamente excomungados. Isso é uma regra do direito canônico da Igreja, algo que o papa poderia mudar facilmente com uma canetada.

A mudança não faria com que o aborto deixasse de ser pecado, apenas reduziria o sofrimento psicológico de casos como esse.

Ao escolher manter essa regra, a Igreja Católica parece considerar mais grave o aborto da menina de dez anos do que o estupro que a engravidou, que não acarreta excomunhão automática, assim como o assassinato "normal", de pessoas já nascidas.

Desta vez, contudo, a sordidez foi mais longe, unindo a imbecilização política crescente ao poder de mobilização das redes sociais.

Pessoas que se dizem cristãs se organizaram para protestar às portas do hospital onde o procedimento ocorreria. Berraram orações, gritos de guerra, xingaram o médico de "assassino" e ameaçaram invadir o hospital. Não estamos muito longe de copiar, por aqui, o terrorismo antiaborto praticado nos EUA, que assassina médicos e funcionários de clínicas, explode bombas e ateia fogo aos prédios. Tudo em nome da vida.

Ativistas protestam diante de hospital em Recife onde criança de 10 anos estuprada passou por procedimento legal de aborto
Ativistas protestam diante de hospital em Recife onde criança de 10 anos estuprada passou por procedimento legal de aborto - Filipe Jordão-16.ago.20/JC Imagem

A discussão sobre o estatuto moral e legal do aborto é importante. Eu, por exemplo, defendo a legalização geral do aborto durante o primeiro trimestre de gravidez, além da permissão para casos especiais (como este da menina) a qualquer momento.

Outros terão posições diferentes. Neste caso, contudo, não importa. Não é preciso solucionar a discussão do início da vida ou da legislação sobre o aborto para entender que as ações dos manifestantes foram profundamente erradas.

Independentemente da posição de cada um sobre o aborto, todos devem reconhecer que coagir e torturar psicologicamente uma menina de dez anos que foi vítima de estupro —e seus familiares— é errado. Ao se colocar na porta do hospital gritando palavras de ordem, foi exatamente isso que os manifestantes fizeram.

A decisão de abortar, plenamente amparada pela lei brasileira, já estava tomada pela menina e por seus responsáveis. Todo mundo tem o direito de discordar dessa decisão, de rezar (na privacidade de seus lares e igrejas) para que ela não ocorra etc.

Mas ao tentar intimidar a família no exercício desse direito legal, os manifestantes apenas causaram mais sofrimento a uma inocente. Seus atos provam que não se importam com ela e nem com a vida humana em geral.

Os malfeitores que participaram da hostilização da menina, da família e dos médicos —adicionando muito sofrimento a uma situação já trágica— não representam a totalidade de nenhuma religião.

São uma minoria sádica e oportunista. Assim, é especialmente importante que pessoas conservadoras e contrárias ao aborto condenem o espetáculo cruel que vimos na porta do hospital. Todos os que participaram deveriam se envergonhar.

E os reais criminosos —o estuprador e todos aqueles que promoveram e organizaram o protesto— devem ser presos sem demora e sem alarde.

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