Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Devemos tolerar a blasfêmia?

Sociedade deve aceitar que provocações mordazes não podem ser respondidas com violência

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Na sexta-feira passada, perto de Paris, um professor de história e geografia foi decapitado na rua. Seu crime? Ter mostrado charges do profeta Maomé durante uma aula sobre liberdade de expressão. O suposto assassino, um adolescente checheno, foi morto em confronto com a polícia. Com mais esse crime, reacende-se o debate sobre os limites da tolerância religiosa e a possibilidade da coexistência pacífica entre muçulmanos, cristãos e secularistas.

O presidente Macron rapidamente apontou o alvo: o "terrorismo islâmico". Há, sem dúvida, um problema ligado ao radicalismo islâmico e a grupos que aliciam jovens para se matarem numa suposta guerra santa. São casos de polícia, que devem resultar em prisão ou expulsão do país. Seria um erro, contudo, acreditar que haja algo na essência do islã (sua natureza imutável) que torne seus membros inimigos em potencial. As maiores autoridades islâmicas na França, aliás, condenaram o assassinato bárbaro.

Alguns séculos atrás, as nações islâmicas eram inclusive mais tolerantes do que as cristãs. A punição da blasfêmia com a morte por apedrejamento é diretamente comandada no Antigo Testamento bíblico.

Diversos reinos cristãos ao longo da Idade Média ratificaram essa regra. Tomás de Aquino, no século 13, considerava que blasfemar, ofender a Deus (e a heresia era uma forma de blasfêmia) era mais grave do que o homicídio. Hoje em dia, no entanto, há quase um consenso entre todas as igrejas cristãs que ninguém deve ser morto por discordar ou desrespeitar suas crenças. A fé se transforma.

Há um quê de agressivo na blasfêmia consciente. Quem faz sátira de Jesus, Maomé ou mesmo de Deus não os tem como alvo; nem mesmo acredita neles. Seu objetivo é chocar ou provocar os seguidores dessas religiões. Viver numa sociedade plural inclui aceitar que mesmo as provocações mais mordazes não podem ser respondidas com violência.

A violência é, contudo, um subproduto previsível da hostilização e do escárnio. Se o islã for escolhido como inimigo público pelo restante da sociedade francesa, o número de muçulmanos dispostos a apelar para a violência contra ela tenderá a aumentar. O ideal de laicidade francês, forjado no anticlericalismo da Revolução Francesa, pode ser bastante agressivo. Há inclusive um prazer em derrubar as crenças ingênuas das religiões e seus símbolos públicos. É esse espírito que anima os atos de manifestantes no Chile, que atearam fogo a uma catedral.

No Brasil, não temos o problema do radicalismo islâmico nem anticlericalismo militante. Os muçulmanos convivem em paz com outros grupos. Há, no entanto, um correlato: a relação da sociedade com os evangélicos, uma minoria relevante (em alguns anos talvez se tornem a maioria), em média mais conservadores que o restante da sociedade e que não raro são alvo de preconceito. Existe intolerância de evangélicos? Sem dúvida. Mas se forem tratados como inimigos jurados pela elite cultural do país, sua intolerância só tende a aumentar. Quando um narcotraficante evangélico expulsa mães de santo de sua comunidade, estamos diante de um bom exemplo de cristianismo? Podemos tirar qualquer conclusão sobre a "essência" de sua religião?

Aos trancos e barrancos, e com muitos retrocessos no caminho, fomos capazes de construir sociedades que toleram pessoas de todas as religiões, desde que aceitem algumas regras muito elementares de convivência com o diferente. Para ajudar nisso, quem defende a tolerância tem que começar dando o exemplo e não ofender gratuitamente os seguidores de outras religiões.

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