Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Tecnicalidades a serviço dos poderosos não são garantia de justiça

No Brasil, discurso que parte de louváveis justificativas para proteger os mais vulneráveis acaba servindo para proteger os menos merecedores de leniência

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Mesmo com todas as divergências entre garantistas e punitivistas, podemos combinar que, num sistema de Justiça criminal funcional, um traficante e líder do crime organizado como André do Rap, já condenado, permaneceria devidamente preso? Se ele foi solto e fugiu, é porque algo não está funcionando bem.

Infelizmente, foi o que aconteceu. O artigo 316 do Código de Direito Penal, aprovado no pacote anticrime de 2019, visava impedir que indivíduos fiquem presos aguardando julgamento indefinidamente. Cabe ao Estado renovar a prisão preventiva a cada 90 dias.

Alguém deixou o prazo estourar no caso do traficante e, com base nisso, o ministro Marco Aurélio Mello o soltou. Na sequência, Fux revogou a liminar. Nesse meio tempo, o traficante fugiu.

Quem está do lado da lei? Marco Aurélio Mello ou o STJ, Fux e Fachin (que também decidira pela manutenção da prisão em caso similar)? Ambos os lados partem da mesma legislação e são profundos conhecedores dela.

A diferença está na escolha de como aplicar a lei e seus diversos princípios a um mesmo caso. Marco Aurélio Mello prima por um garantismo absoluto, da aplicação literal e sem contexto do artigo em questão. Fux entendeu, também com argumentos jurídicos, que não havia motivo para a soltura.

O que está em jogo, portanto, não é apenas o texto legal, mas uma intenção de fundo de proteger o réu acima de tudo sempre ou de equilibrar isso com o combate à impunidade.

Argumentou Marco Aurélio Mello: “No Brasil, se busca dar à sociedade uma esperança vã: primeiro prende e depois apura. Se não me engano, esse é o caso de 50% da população carcerária”. Não era, no entanto, o caso de André do Rap. O traficante é líder do PCC e já foi condenado em duas instâncias. Tinha mansões e helicópteros. É sabidamente um chefão do crime organizado. Será que apresentava risco de fuga?

Presos provisórios pobres aguardam presos preventivamente desde antes da primeira instância, aguardando julgamento —muitos deles, presumivelmente, inocentes. Já um criminoso rico tem à sua disposição todos os recursos que o direito pode inventar.

Indignar-se com um caso desses não é reação de quem odeia direitos humanos e quer justiçamentos populares nas ruas. É o sentimento de qualquer pessoa que valoriza minimamente a justiça. Não há nada de humanista em soltar chefões do crime organizado. E a se opor a isso não é promover justiçamentos com base na ira popular.

Nossos tribunais, já abarrotados de recursos, sequer têm condições de dar conta dessa carga extra. Havia um entendimento de que, uma vez condenado (mas antes da última instância), não seria preciso renovar a prisão constantemente. Mas nunca duvide da capacidade do garantismo absoluto de encontrar novas tecnicalidades para soltar alguém.

Agora um outro traficante, Gilcimar de Abreu, pede soltura pelo mesmo motivo. Será mais uma conquista social de nosso sistema de Justiça criminal soltar traficantes ricos já condenados sempre que o Estado falhar na burocracia fastidiosa de renovar prisões preventivas de criminosos condenados e perigosos que não têm motivo algum para serem anuladas?

É a regra no Brasil: um discurso que parte das mais louváveis justificativas para proteger a parcela mais vulnerável da população acaba servindo, na prática, para proteger os mais poderosos e menos merecedores de leniência. E será que o ladrão de galinha ou o preso inocente se beneficiarão do garantismo puro que guiou Marco Aurélio Mello?

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