Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

A ditadura dos outros

Não há nada na direita que a esquerda não seja capaz de superar, e vice-versa

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A acusação indignada de que um presidente é genocida perde muita força se você, ao mesmo tempo, celebra genocidas notórios. É o que fez a deputada Jandira Feghali, celebrando uma possível (e incerta) queda de Bolsonaro com uma menção laudatória e espirituosa a Stálin. De quem, bem sabemos, o PC do B nunca se libertou.

O stalinismo não é um risco muito presente no Brasil. Sobrevive, é verdade, na forma de fósseis partidários e, surpreendentemente, é um nicho crescente dos influenciadores políticos nas redes; mais um sintoma da polarização e radicalismo bizarros a que estamos sujeitos. Ainda assim, esses delírios comunistas não estão próximos de ditar os rumos do país.

O risco não é que se ressuscite Stálin e o sonho de uma República Soviética Brasileira. E sim que velhas roupagens indiquem ímpetos autoritários renovados. A ruptura democrática, o autoritarismo com desígnios de poder total, se voltar, não será com as mesmas cores e bandeiras do passado. Será com métodos e bandeiras adequados ao nosso tempo, como ocorre em toda tirania.

A democracia —a real democracia, que protege direitos minoritários, e não apenas a vontade da maioria— contraria nosso impulso. Protegê-la não é espontâneo, porque exige refrear aquilo que em nós parece mais admirável: a ânsia de fazer valer a justiça custe o que custar (que, bem sabemos, nem sempre é tão admirável assim e mascara desejos de vingança e de poder).

É como o método científico para o conhecimento: para se chegar a um entendimento minimamente objetivo da realidade, é preciso refrear a tendência do seu próprio intelecto, que se guia pela experiência ou intuição pessoais. É preciso questionar uma teoria; testá-la, se possível falseá-la, para que possamos, provisoriamente, considerá-la verdadeira. Duvidar de si mesmo é mais útil ao conhecimento do que cultivar a própria certeza. O método está acima de qualquer teoria.

Similarmente, a democracia liberal —único regime que protege liberdades individuais e dá a todos a chance de participar do poder e dos recursos, ainda que imperfeitamente— depende de que uma quantidade mínima de pessoas coloque o respeito às regras do jogo político e institucional acima dos seus desejos partidários e ideológicos.

Para que isso ocorra, é preciso que exista alguma fé na integridade do sistema. Se o Brasil é, sob as aparências, uma tirania comunista, e Bolsonaro é nossa única esperança, então tudo vale para garantir-lhe o poder. Se, pelo contrário, a “democracia burguesa” nada mais é do que a defesa dos ricos e em essência igual ao fascismo —só mais limpinha— então também de nada vale respeitá-la. Não existe lado do espectro imune à tentação autoritária: Stálin, Hitler, Pinochet, Fidel, nossa ditadura. Cada ideologia —socialistas, conservadores, liberais econômicos— encontrará um ditador sanguinário.

Bolsonaro corrói as regras do jogo. O que antes era comportamento impensável de tão baixo (como xingar jornalista de prostituta ou duvidar das eleições sem prova alguma) torna-se conduta normal, até esperada. A fé básica, a confiança mútua mais elementar, vai sendo minada.

A pior lição a se tirar dos anos Bolsonaro é a de que a direita é nefasta e que um governo de esquerda, portanto, está livre do risco de autoritarismo e destruição. Sim, o governo Bolsonaro é de direita e é nefasto, mas isso não salva governos de esquerda de também sê-lo. Maduro —mais repressivo e violento do que Bolsonaro em qualquer medida— está aí para provar. Não há nada na direita que a esquerda não seja capaz de superar, e vice-versa.

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