Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Existe 'racismo reverso'?

Nada impede que, ocasionalmente, um branco, um asiático ou outros também sofram violências

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Há muitas críticas possíveis ao artigo de Antonio Risério deste domingo ("Racismo de negros contra brancos ganha força com o identitarismo"). Ele diz que o racismo de negros contra brancos está em alta e atribui isso aos movimentos negros. Mas não mostra um caso sequer de preconceito contra brancos no Brasil. Cata exemplos americanos ao longo de várias décadas: intelectual extremista dos anos 60, violência antissemita nos anos 90, ataques no metrô de Washington. E nós?

Risério é o primeiro a protestar —com razão— quando alguém tenta encaixar nosso país nas divisões raciais americanas. A mesma ressalva é válida, contudo, quando falamos de movimentos negros; o que vale para os americanos não necessariamente vale para o Brasil. Grupos como Nação do Islã e Panteras Negras não são expressivos por aqui.

Punho cerrado de manifestante, com faixa ao fundo na qual se lê "sangue negro"
Marcha da Consciência Negra, em São Paulo - Danilo Verpa - 20.nov.20/Folhapress

A reação ao artigo foi previsivelmente barulhenta. O que predominou foi a indignação feroz; acusações a Risério e à própria Folha. Alguns chegaram a afirmar que o artigo é criminoso. Seu crime é questionar o dogma "não existe racismo reverso". Será? Vamos ao caso concreto, contado por Risério: um grupo de jovens negros agride transeuntes brancos pelas ruas enquanto grita "morte aos brancos". Se isso não é racismo, é o quê?

Em seu livro "Racismo Estrutural", Silvio Almeida define o racismo como algo distinto do mero preconceito racial. O racismo englobaria o nosso sistema social como um todo, constituído de uma história escravocrata e erigido numa estrutura hierárquica que coloca um grupo racial acima de outro e tem meios para perpetuar essa sujeição. Apenas atos em que essa ordem se reafirma seriam propriamente racistas.

Imagine que alguns estudiosos da violência propusessem restringir o termo "assassinato" apenas aos casos em que o que matador fosse hierarquicamente superior à vítima. Se um patrão matasse seu empregado, aí sim teríamos um assassinato. Mas se um vizinho matasse o outro, aí não, teríamos outra coisa, uma "morte violenta premeditada". Páginas e páginas de discussão acadêmica seriam gastas para discutir quais casos seriam ou não seriam "assassinato". Mas a realidade dos crimes continuaria a mesma.

Da mesma forma, quando se fala do racismo na sociedade, o que se costuma ter em mente são justamente discriminação e preconceito. Devido à nossa história escravocrata, à desigualdade racial dela resultante e ao preconceito difundido, esses atos todos serão predominantemente contra negros e indígenas. E, devido justamente a essa carga, uma mesma injúria ou agressão racial dirigida a um negro é pior do que se dirigida a um branco. Mas nada impede que, ocasionalmente, um branco, um asiático ou outros também sofram essas violências.

E não é que sofram "racismo reverso", como se o racismo, em essência, fosse o do branco para o negro. Qualquer ato de preconceito ou ódio contra raças ou etnias, seja do branco para o negro, do negro para o branco, do chinês para o malaio, do hutu para o tutsi, é simplesmente racismo.

Se fosse só uma questão de termos, não faria muita diferença. O problema é que o uso das palavras facilmente altera o entendimento das coisas, resultando na crença de que, quando alguém discrimina ou demonstra preconceito contra um branco, essa conduta não é racista, e, portanto, não é condenável. Definir o "pecado" como se ele só fosse possível no outro lado é o caminho mais seguro para cometê-lo de consciência limpa. O assassinato cometido pelo revolucionário seria um belo ato de resistência e justiça. Sabemos aonde leva esse discurso. O Brasil, felizmente, até hoje não o seguiu.

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