Jorge Abrahão

Coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis.

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Jorge Abrahão

O rastro da pandemia é o atalho para os maiores problemas do Brasil

É preciso pensar no porquê que nos levou a uma sociedade tão iníqua e tão pouco solidária

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Alguns críticos consideram que o maior conto escrito por Gabriel Garcia Márquez aquele em que uma jovem é picada pelo espinho de uma rosa em sua viagem de núpcias durante o inverno europeu. Na espetacular história da literatura fantástica latino americana, o sangue não para de jorrar e suas marcas denunciam a rota seguida pelo jovem casal: “o rastro de teu sangue na neve”.

No Brasil, o rastro da epidemia e de seus impactos difusos levam as raízes de nossos problemas e pode ser o mapa para o enfrentamento de desafios que fomos incapazes de resolver.

Os diversos mapas lançados pelo Instituto Cidades Sustentáveis e tantas outras respeitadas instituições não deixam dúvida quanto a relação direta entre as desigualdades estruturantes do país e o impacto da pandemia. Foram nos locais mais vulneráveis do país e das cidades que ocorreram o maior número de mortes.

A falta de acesso aos serviços de saúde nas cidades —leitos e UTI— foi fator determinante nas mortes por Covid-19, em que pese o heroico comportamento dos profissionais da saúde que tentaram e tentam, de todas as maneiras, suprir carências estruturais da área.

Em um contexto de pobreza crônica, onde 50% da população recebe menos de R$ 413 por mês (PNAD contínua 2018), um alto preço se impõe aqueles que precisam continuar em busca de seu sustento em momentos críticos.

Assim vemos como os pobres foram mais atingidos pela pandemia, justamente pela impossibilidade de cumprir as recomendações das autoridades de saúde: é a sobrevivência versus o risco de contaminação.

A falta de uma infraestrutura básica evidenciada na habitação precária —que não permite o isolamento adequado—, na falta de água e esgotamento sanitário —que dificulta as medidas de higiene— e na dificuldade de acesso à serviços foram os grandes responsáveis pelo alto número de mortes no país.

A relação direta entre as desigualdades estruturantes do Brasil e o elevado número de vítimas da pandemia está detalhado no Mapa da Desigualdade entre as Capitais Brasileiras (https://www.cidadessustentaveis.org.br/inicial/home) e no Mapa da Desigualdade de São Paulo: Covid-19 (https://www.nossasaopaulo.org.br/).

O maior número de mortes de negros e pardos em relação aos não brancos na pandemia revela, mais uma vez, o racismo estruturante que fomos incapazes de solucionar voluntariamente decorridos 130 anos da abolição da escravidão, o que denota a urgência de programas e políticas públicas.

O genocídio dos povos da floresta ---indígenas, quilombolas e ribeirinhos---, os maiores protetores da Amazônia, são prova do descaso com vidas, floresta e biodiversidade.

A violência contra mulheres evidencia as características machistas da sociedade brasileira, deixando clara a necessidade de ações contundentes, desde políticas afirmativas àquelas que abordem a cultura de paz e o combate à violência nas relações familiares e na educação.

A violência crônica da polícia contra os jovens negros e mais pobres traz desafios para uma mudança radical nos padrões de atuação da corporação. Além da urgente redução da violência e das mortes, uma meta para a polícia poderia ser a de figurar entre as instituições mais bem avaliadas pela população, a quem deve servir, buscando transitar do medo para a confiança e admiração.

As precárias condições de trabalho de boa parte da população foi denunciada pelos entregadores e sua pauta de condições dignas de trabalho podem ser reproduzidas para muitos outros segmentos.

Esta dada portanto uma agenda para os políticos definirem seus programas e prioridades nas eleições municipais de 2020 e nas presidenciais de 2022. Seguir o rastro lúgubre deixado pela pandemia pode ser o caminho mais curto para revertermos anos de descaso com os mais profundos problemas do Brasil.

Mas não nos iludamos pois, se há um papel inequívoco dos políticos no encaminhamento de soluções em escala em um país com um grande contingente de pobres, há também a necessidade de uma inflexão na visão da elite econômica do país- tão responsável quanto os políticos, embora menos visível —que dá suporte a medidas que só fazem concentrar renda e com isso, aumentar as desigualdades.

Prova disso é a pressão de grupos empresariais para a precarização do trabalho, a redução de capacidade de investimento e do papel do estado, o alto juro cobrado pelos bancos para pessoas físicas e pequenos comerciantes, o apoio a políticas que provocam o desmatamento das florestas e perda da biodiversidade, entre tantas outras.

E, mais além do olhar estatístico e racional de nossos problemas, é necessário pensar no porquê da baixa qualidade de afetos que nos levou a uma sociedade tão iníqua e tão pouco solidária. Um país onde grande parte das classes média alta e alta não se sensibilizam com tamanha desigualdade, diferentemente de muitos outros países.

Dado o senso de urgência do momento, não é possível esperar a formação de uma nova geração para a realização de mudanças. Teremos que tomar decisões que contem com os recursos dos mais ricos. Não faz sentido a manutenção dos atuais padrões de desigualdade em um país rico como o Brasil, apenas por insensatez e insensibilidade de poucos.

Será portanto a combinação de ações do Estado e da sociedade civil organizada, que priorizem o enfrentamento desta desigualdade estruturante do país —com recursos vindos dos mais ricos— que poderá encaminhar a solução para problemas que hoje nos envergonham.

É possível, depende de nós.

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