Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli
Descrição de chapéu feminismo machismo

O 'não' das mulheres não pode ser tomado como resistência fingida

A surdez dos homens ao ouvir a negação feminina tem contrapartida na educação das meninas

Quando qualquer mulher diz "não", é não.

É essencial reafirmar que esse "não" é, de fato, um não definitivo. Porque ele traz consigo um passado de quando era outra coisa. De um tempo em que os homens eram educados para serem predadores sexuais sem nenhum respeito.

Os escândalos de assédio e violência que pipocam hoje são, em grande parte, o resultado dessa implacável pedagogia do macho. Ela tornou infelizes muitas mulheres e muitos homens --os tímidos, os naturalmente respeitosos ou românticos, que se adaptavam mal a esse papel.

Escrevo tudo no passado, como se essa barbárie não existisse mais. Bem evidente que ainda existe. Ouvi ainda recentemente uma senhora proclamar, orgulhosa, sobre seu filho adolescente: "Digo para minhas amigas: segurem suas cabritas porque meu bode está solto".

Mas os tempos estão mudando, já que tantas mulheres não se aquietam mais e que mães e pais criam filhos de modo diferente. Sei bem, no entanto, que estamos longe de uma situação razoável. É por isso que reiterar o "não é não" das mulheres torna-se capital.

Lembro um vídeo do canal "Porta dos Fundos" em que, num restaurante, o rapaz entende sempre outra coisa quando a mulher que o acompanha diz "não". A surdez dos homens ao ouvir a negação feminina tem, no entanto, uma contrapartida. Ela está na educação das meninas.

Elas aprendiam, ou aprendem ainda, que o "não" pode querer dizer "não agora", "sim, mas não sou dessas" ou "só depois do casamento". Ou seja, o "não" vinha tomado pelos homens como apenas uma resistência ou fingida ou frágil que era, ou é, imperativo vencer.

Um exemplo bem antigo: em 1786, na fabulosa análise sobre a guerra dos sexos que contém "As Bodas de Fígaro", ópera escrita por Mozart, há um diálogo expressivo. Susanna, a criada, que sempre havia resistido, finge ceder à sedução do conde. Este então se espanta: "Cruel, por que até agora me fizeste sofrer assim?". E Susanna responde: "Senhor, a mulher tem sempre tempo para dizer sim".

Ou seja, era preciso resistir, nunca pronunciar logo o "sim", sob pena de parecer fácil. Uma vez preenchido o requisito do não, o sim tinha chances de ser liberado.

Mais mulheres, hoje, abandonam os subterfúgios que disfarçavam seus desejos. Nem todas ainda, infelizmente. É uma luta que dura e vai durar. Mas ponho fé que a boa vitória esteja chegando.

Neste momento de combates, no entanto, as suscetibilidades ficam em carne viva. Com isso, nuances são massacradas, acusados tornam-se culpados e muitos homens se veem atordoados diante das regras do novo jogo. Avanço nesse campo do modo mais delicado que posso, para não ser, eu também, mal interpretado.

É que desejo mencionar um livro editado há pouco pela 7 Letras. Seu autor é Raul Ruas e o título tem leve gosto de provocação: "Como Não Agradar as Mulheres". Ruas não entra nas questões que envolvem as batalhas feministas. Seu tema são as liturgias codificadas na aproximação entre os sexos.

O livro é audacioso, pelo menos por duas razões. A primeira é o tema, muito delicado hoje em dia. A segunda é por ser escrito com finura irônica e melancolia. Ruas burila o estilo, cuida da palavra, escreve com gosto e precisão. É ordenado e claro, sem vulgaridade, sem facilidades. Vai, portanto, a contrapelo do mundo de hoje.

Seu personagem é Y, jovem tímido, desajeitado, que tenta proceder às conquistas em lugares superficiais e patéticos, como clubes noturnos, casas de swing, prostíbulos.

Suas análises começam pelo que chama de "síndrome do não". Explica assim: "Era mais: ele sofria do que batizou de 'síndrome do não', o que, superficialmente, trata-se de --como o nome mesmo permite supor-- aproximar-se de qualquer mulher esperando ouvir: não. Superficialmente. Indo além, trata-se, antes de tudo, de abrir uma dimensão: a dos signos. Se, por exemplo, toda boate é um ajuntamento que fervilha, ela é também, mais objetivamente ainda, um ajuntamento que fervilha, em meio a seus partícipes, um mundo de signos".

Ao ler esse pequeno "Como Não Agradar as Mulheres", é preciso cuidado. Y não se identifica com o autor (não importa que possa haver nele traços autobiográficos) e as reflexões contidas neste pseudomanual foram apanhadas pela rede intrincada das relações contemporâneas entre homens e mulheres.

Nem Y nem Raul Ruas são responsáveis por elas ou pelos comportamentos que engendram. Eles apenas as retiraram da mais consternante realidade para transformá-las em literatura.

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