Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Jorge Coli

A música dita clássica não é apenas um acessório, ela é vital

Arte é um meio ativo de intuição para apreender um pouco o mundo incompreensível que nos rodeia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Termino a leitura com o coração comovido. Tenho vontade de escrever a respeito, o que não é fácil. "O Maestro, o Cuco, a Lenda" (editora Texugo), de Wagner Willian, uma história em quadrinhos —perdão, uma "graphic novel", como se diz hoje—, é tão delicada, gera sentimentos profundos de modo tão discreto e elevado que qualquer comentário sobre ela contém algo de profanador.

Seu princípio é o das associações metamórficas, como em "Alice no País das Maravilhas", que Monteiro Lobato retomou no seu livro mais poético, "Reinações de Narizinho". Um percurso entre o sono e a vigília, o devaneio e o sonho, no qual se mesclam coerência e desordem, real e imaginário.

"O Maestro, o Cuco, a Lenda" é inspirador. A editora Casterman, que enriqueceu com os álbuns de "Tintin", criados por Hergé, e publicou os "Corto Maltese", de Hugo Pratt, mais uma vez mostrou seu faro infalível, pois mal o livro sai no Brasil e ela lança, já em setembro, sua versão francesa, sob o título de "La Legende du Coucou".

É ingrato dizer que é uma obra tratando de questões metafísicas. De fato, nele nos deparamos com o tempo e a morte, a crueldade instintiva e o prazer oferecido pela arte neste nosso mundo caótico e infeliz. Um exemplo apavorante: a passagem sobre o assum preto que deve ter seus olhos furados para cantar melhor.

Orquestra do Festival
Orquestra do Festival de Inverno de Campos do Jordão se apresenta na Sala São Paulo - Arthur Nestrovski/Divulgação

São preocupações que, de fato, alimentam a narrativa. Mas elas não vêm sublinhadas; nem mesmo são explícitas. Brotam da leitura que avança como se não percebesse tudo que suscita. Para dar exemplos: a escravidão no Brasil, a inundação da mineradora Samarco, que provocou o abominável oceano de lama em Minas Gerais e no Espírito Santo, inserem-se sem afetação como componentes do absurdo coletivo.

O estilo do desenho acompanha essa discrição. Não tem efeitos nem firulas complicadas, nem exibicionismo. Prossegue sempre seguro e com calma, tirando dessa constância a presença que envolve e hipnotiza. Não sugere impulso criador frenético, mas longa decantação. O autor confirma essa hipótese no final, ao contar que o resultado passou por várias versões anteriores e que foi longo o tempo até chegar à sua forma definitiva.

Mencionei Lobato há pouco; lembrei-me muito dele enquanto lia esse "Cuco". Em particular, da vontade ávida por conhecer que o bando do pica-pau amarelo inocula no pequeno leitor. Talvez, no "Cuco", ela não seja tão ávida, tão enxerida, como a de Emília, mas, insidiosa, não é menos forte.

Fico imaginando um jovem, ou uma criança, descobrindo, por ele, um mundo sedutor, o da "música erudita", ou "clássica". São denominações pedantes, mas inevitáveis. Não importa, porém, o nome: designa uma arte de sons capaz de nos conduzir a tantos paraísos.

De maneira prosaica, pensei nas mães e nos pais bem-intencionados que levam seus filhotes para ouvir a "grande música" (outro nome infeliz) nos concertos. Quem leu "Cazuza", escrito por Viriato Correia, não se esquece do menino abrindo berreiro numa representação da opereta "Os Sinos de Corneville", em São Luís do Maranhão.

Trata-se de tortura para os garotinhos —e para os outros ouvintes também. Exigir que permaneçam imóveis e atentos durante horas, esperando o suplício acabar, é um castigo. Não vai despertar interesse em criança alguma; muito pelo contrário, suponho rancores definitivos e inextirpáveis.

Há uma pedagogia da audição a ser feita em casa. É simples: basta dar um toca CDs para o pimpolho e discos (ou uma playlist escolhida, mas que seja só dele): "Sheherazade", "Sagração da Primavera", um álbum de Chopin ou de Vivaldi, outro com excertos de "O Barbeiro de Sevilha" ou de "Carmen". Não há melhor ponto de partida.

Por sinal, faz tempo que eu não via uma iniciativa como a coleção com óperas e concertos para crianças que a Folha propôs neste ano, ótimo caminho. Só com a familiarização efetiva a criançada estará pronta para concerto ao vivo, começando por aqueles mais apropriados à sua idade.

A música dita clássica não é um acessório, ela é vital. Como todas as manifestações profundas da cultura, é um meio ativo de intuição para apreender um pouco o mundo incompreensível que nos rodeia.

Isso nos diz bem "O Maestro, o Cuco, a Lenda": "[Meu avô] tinha um processo diferente para resolver as coisas. A música era solução para tudo". E sublinha sua força: "Você não pode ignorá-la [a música], como fechar os olhos a uma pintura ou escultura. A música nos cerca de todos os lados, atravessa o fígado, a pele, o estômago".


Jorge Coli é professor de história da arte na Unicamp, autor de "O Corpo da Liberdade".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.