Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Bienal é retrato de uma produção artística que ficou no passado

Morto em 2014, Aníbal Lopez é o único verdadeiro artista do século 21 em toda a mostra

Se você for à Bienal, comece pelo último andar. 

Lá estão as salas consagradas a Aníbal López (A-1 53167): o número entre parênteses que faz parte de seu nome é o de sua carteira de identidade na Guatemala. Com esse número, a identidade, neutralizada e objetivada, escapa a referências nacionais ou culturais. 

Morto em 2014, aos 50 anos, ele é, em toda a Bienal, o único verdadeiro artista do século 21. 

Modelou bonequinhos de barro como os da arte popular, empregou as práticas abstratas e tantas vezes estéreis da arte conceitual, fez intervenções públicas diversas, obrigando-nos a intuir com intensidade tanto a violência coletiva quanto o caráter irrisório do próprio universo artístico.

Os pequenos personagens de barro têm aspecto delicado e fatura elegante. Pertencem à série “Antologia da Violência na Guatemala”. Seus títulos expressivos são: “Mutilação”, “Linchamento”, “Aborto”, “Suicídio”, “Tonel Cimentado”. 

O fascínio que exercem, a percepção irônica trazida pela finura da forma em contraste com o tema, conduzem, sem remédio, à percepção daquilo que vivem as pessoas no quotidiano da Guatemala, e que se assemelha ao que se passa no Brasil.

De suas intervenções e performances, menciono a intitulada “500 Caixas Contrabandeadas do Paraguai ao Brasil”. Aníbal López (A-1 53167) contratou contrabandistas da fronteira, que empacotaram 500 caixas de papelão vazias em sacos de lixo pretos. Junto com outros objetos (estes autênticos), elas foram levadas de um porto clandestino em barco a remo e terminaram em Porto Alegre. 

Lá, essas caixas constituíram uma grande escultura, que foi apresentada na 6ª Bienal do Mercosul, em 2007. Tudo documentado com fotos e vídeo.

A experiência das ficções legais, das regras solenes e ineficazes, engendram organizações criminosas muito eficientes e tão conhecidas que é facílimo contratar seus serviços. 

O que sabemos sobre corrupção de autoridades pactuando com as práticas paralelas, sobre a impotência de nossa sociedade diante da aplicação das leis, sobre o cinismo dessa mesma sociedade consumindo produtos ilegais, e mesmo sobre o próprio vazio humano desse consumo, tudo isso, diante da obra, deixa de ser um conhecimento distante e abstrato, amortecido em nossa alma, para se tornar uma emoção dolorosa.

De Aníbal López (A-1 53167) lembro mais um vídeo, “Testimonio” (testemunho), filmado na Documenta de Kassel, em 2012. Um assassino profissional da Guatemala se dispôs a responder, por trás de uma tela que o ocultava, todas as perguntas feitas pela audiência. O vídeo está no YouTube. 

"Testimonio" (testemunho), de Aníbal López
"Testimonio" (testemunho), de Aníbal López - Divulgação

Em sua fala, os assassinatos tornam-se naturais, normais e necessários. Essa situação que causa calafrios na espinha é reforçada pela participação dos espectadores, tranquilos diante do estado caótico do mundo, e mais ainda da América Latina, que se transfigura ali em arte.

No último andar da Bienal está também o conjunto “Os Aparecimentos”, que Waltercio Caldas organizou. Belas obras ligam-se entre si num modo poético e íntimo. 

É o único local dessa Bienal em que emerge a sensibilidade necessária para criar uma atmosfera de integração. É também o único em que a identificação do que está exposto é clara, poupando o visitante das etiquetas confusas presentes fora dali. 

Ao lado, as salas organizadas pela pintora sueca Mamma Andersson unem sua obra a outros artistas de seu país, sobretudo do passado, que são descobertas interessantes. Há, próximo, um conjunto consagrado ao que Siron Franco criou em 1987, inspirado na catástrofe provocada pela cápsula de césio-137 em Goiânia.

Waltercio Caldas, ele próprio com 71 anos, vai buscar obras que remontam aos desenhos de Victor Hugo, a pinturas dos anos 1920; Mamma Andersson traz ícones russos do século 15 e várias telas do século 19. Siron Franco faz parte evidente do patrimônio artístico brasileiro. Trata-se, portanto, de monumentos históricos.

O resto desta 33ª Bienal tem do bom e do menos bom, e só pelo fato de reunir 600 obras de quase cem artistas, ela se impõe, apesar da exposição solta e desarticulada. 

No entanto, o que se vê ali é a tradição vanguardista do início do século perpetuando-se como academismo. Muito neo-Duchamp, neo-pop art, neo-surrealismo, neo-qualquer-velha-vanguarda. Ou seja, o retrato de uma produção artística que ficou no passado.

Eu não saberia dizer o que poderia ser a arte do século 21. Em todo caso, afora a exceção de Aníbal López (A-1 53167), que leva em conta o mundo atual, não é aquilo que está no prédio do Ibirapuera.

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