Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Incêndio do Museu Nacional é a manifestação do caos em que vivemos

Não que o Brasil fosse perfeito antes, mas agora o apocalipse está bem diante de nós

O incêndio do Paço de São Cristóvão, com todos os tesouros do Museu Nacional, me fez pensar em Luiz Dantas. Ele faleceu há dez anos e não há motivo direto para essa relação. Luiz Dantas foi meu grande amigo, professor e diretor no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Era alguém amável e muito amado.

Sempre tive inveja de que seus alunos o amassem sinceramente. Eu, como professor, talvez consiga impor respeito aos meus, com tudo o que a essa palavra tem de distante e frio. Luiz, ao contrário, tinha a devoção do amor que lhe consagravam alunos e amigos.

Associei Luiz e o incêndio pensando que ele não viveu para presenciar a degringolada furiosa de hoje. Não que o Brasil fosse perfeito antes, longe disso. Mas agora o apocalipse está bem diante de nós, como uma nebulosa escura. E nós avançamos, sem saída, em sua direção.

Funcionários carregam material do Museu Nacional para salvar do incêndio
Funcionários da UFRJ tentam salvar material de pesquisa do Museu Nacional na noite de domingo (2) - Fernando Souza/AdUFRJ

Luiz não viveu para ver o rompimento da barragem em Mariana, ele, que não perdia um feriado prolongado sem ir respirar naquelas Minas Gerais de sua paixão. Nem para se horrorizar com aquilo que Shakespeare chamou de "the law's delay" —o atraso da lei—, as demoras legais que dissolvem crimes num amálgama malcheiroso e sem fim, evitando que qualquer justa solução ocorra.

Sabia muito bem o quanto viver no Brasil é perigoso —seu irmão José Otávio foi baleado por um ladrão dentro da própria casa; a bala se aninhou num ponto estratégico, não pôde ser retirada, mas não afetou o organismo. Quase escrevi "felizmente", mas parei a tempo. Porque veio um sentimento de frio no estômago, ao pensar que sobrevivemos num país no qual ser baleado e não morrer é felicidade.

Mas Luiz não podia imaginar, e eu também não, o descalabro civil chegando ao extremo em que está.

Também não viu, para além da eterna corrupção endêmica, o apogeu que atingimos: os obscenos milhões em malas; os esforços de um poder frágil e ilegítimo, comprando gregos e troianos para se manter; as manipulações daquilo que se tornou uma democracia circunstancial, dominada por uma Justiça ainda mais circunstancial. Nunca foi tão evidente o império daquela frase: "Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei".

Pode ser que algum leitor jovem pense que eu esteja embelezando o passado para deixar o presente mais horrível do que é. Não me lembro de um presente pior, mas sei que houve um passado no qual o futuro era mais belo.

Luiz Dantas e eu éramos da mesma geração, nascidos em 1947. Quem passou a infância nos anos 1950 sentia que estava no caminho da civilização. O país era arcaico, rural, com muito analfabetismo, pobreza, doenças e fome, mas civilizado o suficiente para acreditarmos no título daquele livro de Stefan Zweig: "Brasil, um País do Futuro".

São Paulo era "a cidade que mais cresce no mundo", o que se considerava como evidente superioridade e progresso: Oscar Niemeyer criou o símbolo das festas que celebraram o quarto centenário, em 1954, a partir de um gráfico traçando o crescimento da população.

A industrialização se expandia; Brasília era inaugurada, em 1960. A reforma agrária fixaria o homem no campo, em equilíbrio com o avanço industrial. Numa evolução harmoniosa, a velha cultura rural seria modernizada sem desaparecer,

Veio, porém, o golpe de 1964: brutalidade das medidas, expansão do agronegócio, migração maciça dos despossuídos para os grandes centros. Foi uma pancada violenta. Porém, sob o manto de chumbo, havia ainda esperança. A ditadura, um dia, chegaria ao fim.

Voltou a democracia. Nova Constituição, avidez por uma abertura do país ao mundo, sentimento de poder agir numa reconstrução.

Em nossos dias, a barbárie impera. Neopentecostais tomam o poder e triunfa o pior moralismo. As próximas eleições trazem candidatos que deixaram as estratégias das velhas raposas e seduzem a classe média, tão cega quanto apavorada, acenando com promessas de ordem e de repressão por meio de abjetos preconceitos.

O incêndio do Paço de São Cristóvão é a manifestação, trágica e espetacular, do caos em que vivemos. Luiz sofreria com isso, sofreria muito; ele, um pesquisador apaixonado que se especializara na visão do Brasil pelos viajantes (seu estudo sobre os homens de rabo, partindo dos testemunhos que Castelnau recolheu no Brasil, é uma joia).

Não viu o caos chegando. Morreu acreditando que era possível construir ainda um belo futuro.

Eu fiquei. Hoje penso que talvez consigamos salvar, aqui, ali, alguma coisinha, minúscula, no meio do incêndio que não se apagará tão cedo.

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