Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

'O Doutrinador' é uma obra sobre contradições que se recusa a doutrinar

Filme de Gustavo Bonafé mostra herói de obstinação infeliz, meio louca, meio obtusa

Fui arrastado por um amigo para assistir a “O Doutrinador”, filme de Gustavo Bonafé. Nunca tinha ouvido falar do diretor. Com tanta gente doutrinando santamente na política, o título desanimava.

A tagline —“A corrupção criou seu pior inimigo”— fazia pensar num Capitão Nascimento transformado em super-herói subdesenvolvido, pronto para entrar no ministério Bolsonaro. Uma série anêmica como “O Mecanismo” me vacinara contra as tentativas políticas do cinema (ok, considero que as séries são cinema) no Brasil.

No entanto, as primeiras cenas já impuseram uma verdadeira dicção cinematográfica. E a qualidade de “O Doutrinador” não parava de crescer no desenrolar da história. Talvez apenas um videoclipe com flashbacks, destinado a demonstrar o sofrimento do herói, e a mensagem moralista do final tenham fraquejado.

O nome do protagonista, o Doutrinador, não faz o menor sentido. Ele não doutrina, mais ainda, quase não fala. Pelo que eu soube, foi escolhido meio ao acaso por Luciano Cunha, que o inventou numa história em quadrinhos. 

O personagem é feito de pulsões. Banhado em ódio, não pensa. Quando o Doutrinador está preso e é recriminado pela ex-esposa, Kiko Pissolato, que o encarna, é impressionante. Mudo, imóvel, transmite obstinação infeliz, meio louca, meio obtusa. 

A formidável cena em que o governador é assassinado concentra o ódio interno de todos, ou quase todos, em todo caso, o meu, contra a abominação de políticos sem consciência. No entanto, esse ímpeto instintivo e cego recebe seu troco com a consequência pesada dos inocentes que morrem. 

O Doutrinador tem um grilo falante, Nina —a atriz Tainá Medina, formidável— que entra em cena para acentuar a ambiguidade. Impulsos nada resolvem. A apoteose niilista do desfecho é um desafogo de ódio, não mais do que isso.

Mencionei Tainá Medina. “O Doutrinador” demonstra algo que é incomum no cinema nacional: boa direção de atores. 

Outro ponto raro: ricos representados de maneira convincente. Se o mundo da favela já teve reconstituições impressionantes por diretores nacionais, a figuração de classes altas quase sempre falha. 

Gustavo Bonafé foi excelente nisso, jogando no limite da caricatura. Mas os políticos, boçais ou sofisticados, latifundiários ou pastores, são na verdade tristemente caricaturais. Cínicos e safados. Até mesmo a manipulação eleitoreira do “kit gay” ou de um filho assassinado comovendo as massas aparecem no filme. 

A cidade é fictícia, uma São Paulo sobretudo noturna, recriada pela fotografia de Rodrigo Carvalho, tão exata e sem fricotes pretensiosos. Gotham City melhor do que Gotham City.

O cineasta declarou em algum lugar que quis fazer um filme só para divertir. Não importa o que ele diga, mas o que seu filme diz, mais e melhor.

No clima político polarizado em que vivemos, é presumível que as sutilezas desapareçam para quem se limite a perceber apenas um mascarado dando tiros para combater a corrupção. E sinta no Doutrinador o candidato a ministro. É o preço de uma obra que se faz sobre contradições e se recusa a... Doutrinar.

Saí do cinema entusiasmado. Procurei o gibi que deu origem ao filme: esgotadíssimo, impossível de obter um. Continuo procurando.

Mas sabendo em cartaz outro filme do mesmo diretor, corri para ver. É “Legalize Já – Amizade Nunca Morre”, no qual Gustavo Bonafé faz parceria com Johnny Araújo. Data de 2017 e, em princípio, deveria contar a formação da banda Planet Hemp. 

Digo em princípio porque é menos e é mais: o retrato tremendo do Rio pobre, enquadrado pela polícia que, violenta e arbitrária ao absurdo, emprega a criminalização das drogas como meio de extorsão. 

O Rio de Janeiro deixa de ser turístico. Esvaziado de cores graças à fotografia de Pedro Cardillo, é imundo, infecto, fedorento como clínica sórdida de aborto clandestino. Na cidade podre nasce, sem sentimentalismo, uma amizade trágica. O sucesso obtido pela banda no final não atenua o sentimento de desespero.

De novo, a direção de atores é crucial e excelente, como é excelente a montagem. 
Ícaro Silva é Skunk, o inventor do Planet Hemp, e Renato Góes é Marcelo D2. Tecem uma relação delicada que se fortalece apesar de conflitos. O argentino Brennand (Ernesto Alterio), dono de boteco, cria um oásis de afeto no qual a banda encontra seu solo.

Li algumas críticas de nariz torcido para os dois filmes. Bobagem. Há muito não aparecia algo tão bom e crítico no cinema brasileiro. É um reconforto diante das trevas que se adensam em nosso horizonte.

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