Um atirador enlouquecido matou várias pessoas na Catedral de Campinas, cidade onde moro. Quase no mesmo momento, outro assassino fazia vítimas em Estrasburgo, cidade da França.
O culto pelo armamento individual é insano: conduz à multiplicação de mortes acidentais ou intencionais. Os Estados Unidos têm, desde o western pelo menos, a cultura da justiça feita pela bala. Um artigo da BBC nos diz que 40% dos norte-americanos possuem uma arma de fogo ou vivem numa casa em que existe uma.
Resultado: é um país campeão, e de longe, no mais alto número de mortes por tiros. 64% dos homicídios ali cometidos são por arma de fogo. Na Inglaterra e no País de Gales, a porcentagem é 4,5%. Assustadora a celebração das armas pelo presidente eleito no Brasil, que criou um gesto simbólico em sua campanha imitando revólver ou pistola. Gesto indecente, odioso, que celebra a morte de nossos semelhantes, ensinado até para crianças.
Penso, porém, em outras questões. Há uma distinção entre o que ocorreu em Estrasburgo e Campinas. No primeiro caso, trata-se de terrorismo. Um fundamentalista muçulmano reagindo contra o Ocidente e seu cristianismo.
Em Campinas, disse a imprensa, o assassino revoltava-se contra seu pai, católico que se consagrava à igreja, esquecendo-se do filho.
São explicações plausíveis. Divergem, porém, no fato de que uma tem motivação coletiva em ampla escala —Oriente contra Ocidente, islamismo contra cristianismo. A outra seria uma reação individual, associada ao delírio persecutório. Mas ambas crescem no terreno comum da religião.
Em Estrasburgo, o atentado ocorreu num mercado natalino; em Campinas, foi na Catedral Metropolitana. São indicadores significantes muito fortes dentro dessas tragédias. Eles se ampliam pelo fato de terem ocorrido à proximidade do Natal, grande festa religiosa.
As crenças impulsionam ações individuais e coletivas tanto ou mais do que as determinantes econômicas. São, dessa maneira, poderosos motores da história.
Crenças conferem segurança aos sentimentos e oferecem sentido à vida. Simplificam, confortam e acomodam. Com elas, não é preciso levar em conta contradições, análises complexas, hesitações. São, por si só, a grande resposta.
Se Deus existe, na hora do desespero a assistência virá. Se não existe, sou órfão, abandonado no mundo e condenado a contar apenas com minhas forças. A segunda hipótese é difícil, áspera e exigente.
Decidir se Deus existe ou não deveria ser uma questão pessoal a ser resolvida no foro íntimo de cada um. Infelizmente, não é assim, pelo menos não na maioria dos casos.
É muito difícil guardar Deus para si próprio, numa relação íntima e individual. Crenças tendem a se espalhar, a virar epidemia. As religiões monoteístas fundam paranoias: meu deus é o único verdadeiro.
Em consequência, o vizinho, que não crê no mesmo deus que eu, torna-se uma ameaça. Precisa ser convencido, convertido, ou eliminado. Seu deus é falso pela boa razão de que o meu é o único verdadeiro.
O fanático está pronto para morrer, mas também para matar. Nele estão reunidas as duas “classes” espirituais que a “Enciclopédia” de Diderot distinguia no século 18, uma suicida, a outra assassina: “A primeira não faz outra coisa a não ser rezar e morrer; a segunda quer reinar e massacrar”.
Acreditar é uma palavra terrível, porque aprisiona. Quem acredita, acredita no que acredita, e basta. Ora, é fácil manipular crenças. O fanático quer se unir desesperadamente com Deus e com seu intermediário na Terra. É suficiente convencer de que falo em nome de Deus para adquirir uma autoridade imensa. O delírio de pregadores que contam as histórias mais malucas é aceito com veneração.
Essa ascendência pode levar à mais inescrupulosa exploração humana. Quando o poder político o emprega para sua afirmação, cria um poderoso escudo e um ilusionismo imbatível. Quando alguém vende algo de imaterial —ou mesmo, para alguns, de inexistente— faz o melhor negócio do mundo.
Uma lavagem cerebral transformou o muçulmano em fanático. Mas que fragilidades se infiltraram em sua alma, a ponto de deixá-lo pronto para um ato tão insano, é impossível conhecer.
O infeliz da catedral sentia-se perseguido; os seguidores de uma religião que sequestrara o afeto de seu pai seriam os culpados. Essas razões mecânicas, porém, são grosseiras e pouco explicam. São misteriosas as causas da loucura individual ou coletiva.
Seja como for, com Deus ou sem Deus, e apesar dos homens, feliz Natal a todos!
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