Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Só há perfeição na arte quando o tempo deixa de existir, ou seja, nunca

Quando desejamos introduzir o perfeito no mundo imperfeito, deixamo-nos levar por utopia inalcançável

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Assim como as matérias —quaisquer que sejam: tinta, tela, papel, mármore, bronze—, o tempo faz parte das obras de arte. Ele se infiltra quando o criador fabrica seu objeto. O tempo presente, o instante da produção, se insere e marca; ele permanecerá para sempre, mas modificando-se, porque o tempo devora a si mesmo para renascer diferente.

Como consequência, o tempo altera a obra. Ele o faz de um ponto de vista material, está claro, envelhecendo-a fisicamente. Não há substância, por mais resistente que seja, capaz de se opor ao desgaste, à alteração. 

Certos restauradores buscam um graal impossível: voltar ao primeiro estágio concreto da obra, a seu aspecto inicial. Jean Renoir dizia que nem as pirâmides do Egito durarão para sempre. É uma perspectiva melancólica, mas real: a mais dura constituição é frágil

As restaurações são necessárias, prolongam a existência dos objetos. Mas elas não são, por mais que se queira, um retorno filológico; ou, se o são, a filologia passa a fazer parte da obra. 

A restauração, portanto, se insere na história do quadro, da arquitetura, ou o que mais seja. É o tempo, seja pelo desgaste, seja pela restauração, alterando, com seu gênio metafísico, a criação humana.

A volta à aparência de origem é impossível porque os olhos também mudaram. 

Não podemos nos banhar duas vezes nas mesmas águas de um rio, dizia Heráclito. 

Assim, também não podemos olhar duas vezes do mesmo modo para uma obra —ou para outra coisa qualquer, por sinal. Porque somos moventes no nosso interior, nas nossas percepções, nos nossos afetos. Muda o sujeito e muda o objeto, ou melhor, muda a unidade constituída pelo rio e pelo banhista, criada no instante da experiência.

mulher pinta quadro
A restauradora Adriana Vera Duarte faz limpeza na tela "Sagrada Família" do pintor Cândido Portinari, em Batatais (SP) - Edson Silva/Folhapress

As obras de arte emitem sinais muito complexos que exigem decifração. Mas eles são igualmente, e de modo concomitante, embrulhados pelo próprio tempo, alterados por ele, misturados. Seus receptores —ou seja, nossos sentidos, nossas faculdades de captar, compreender e interligar— também se alteram.

Eis que o tempo trabalha como um componente subversivo da arte. Ele introduz uma relação nada confortável, porque elimina toda estabilidade, toda referência imutável, e condena, de fato, toda filologia, apesar dos esforços que fazem os historiadores e críticos.

Com estes, acontece o mesmo que com os restauradores. Uma interpretação passa a integrar a obra. Podemos recusá-la e combatê-la, buscando destruí-la para melhor impor a nossa, mais recente. 

Mas a anulação é impossível: para que a segunda análise exista, ela precisa da primeira, está obrigada a pressupô-la e, com ela, o pressuposto de seu pressuposto, todos os pressupostos que se incrustaram e se integraram na substância mesma desses objetos fascinantes.

Muitas vezes associamos as obras à ideia de perfeição. Aqui, novamente, estamos num processo ilusório. Perfeição é meta, sem dúvida, mas meta impossível. Ela implica a plenitude intacta, ideal, ou seja, fora do tempo. 

Que o ideal tenha podido guiar a produção de tantos artistas está fora de dúvida. Porém o máximo que se pode conceder é a existência de uma perfeição relativa. O que já é uma contradição intrínseca ao enunciado. Só há perfeição efetiva quando o tempo deixa de existir, ou seja, nunca. 

Temos que nos conformar que somos condenados ao imperfeito. Quando isso não ocorre, quando desejamos introduzir o perfeito no mundo imperfeito, deixamo-nos levar por uma utopia inalcançável. Quando desejamos fazer isso à força, caímos na tirania do modelo ideal. 

O caso mais trágico dessa violência, com consequências abomináveis, deu-se com o nazismo. Ele buscava raça perfeita, mundo perfeito, numa estabilidade em que o tempo era escravizado à ideia de perfeição, e pressupunha-se que o tempo, no futuro almejado, passaria sem alterar. 

O tempo é, portanto, o grande inimigo da perfeição e o supremo aliado das complexidades e contradições que fazem pulsar a vida da arte.

A passagem do tempo é um componente vital e intrínseco à produção artística. É impossível eliminá-la. Toda tentativa de fazê-lo é ilusória e, muitas vezes, perigosa. Qualquer tentativa de ignorá-la é apenas desconhecimento.

Dizemos, por vezes, que há obras imortais, e talvez seja verdade. Mas a imortalidade surge da contínua modelagem que elas sofrem sob as mãos do tempo. Marguerite Yourcenar, em uma bela fórmula, escreveu que o tempo é um grande escultor. É verdade, mas ele é mais do que isso: o tempo é um grande artista.

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