Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Jorge Coli

Deveríamos sempre fazer a distinção entre artista e autor

O primeiro produz a obra, enquanto o segundo nasce dela

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Deveríamos sempre fazer a distinção entre artista e autor. O artista produz a obra. O autor nasce dela.

O dicionário Michaelis ajuda. Artista: indivíduo que se dedica às artes ou faz dela meio de vida. Autor: aquele que é causa primária e principal. Um é indivíduo, pessoa, ser concreto, como cada um de nós. O outro é causa, abstração.

Um exemplo: os historiadores da arte inventaram a noção de mestre para substituir o nome de um pintor desconhecido. Ao se depararem com obras anônimas, por vezes encontram grupos semelhantes pelo estilo. Concluem que foram executadas pela mesma mão, embora não se saiba qual. Assim, há o “Mestre do Cravo de Berna”, pintor que viveu na Suíça no século 15; ou o “Mestre da Vela”, do século 16.

São autores de obras, mas nada sabemos sobre eles como artistas, a não ser o que deduzimos de suas pinturas. Figuravam sempre um cravo ou uma vela, mas ignoramos se gostavam de cravos e de velas ou se os puseram ali por outro motivo; se eram mulheres ou homens, se tinham filhos. Ou seja, não os conhecemos como artistas.

As obras formam um pensamento. Não um pensamento conceitual e lógico, mas produzido de outro modo, sensível, brotando na espessura artística. A obra de arte é um pensamento material e objetivado. Um feixe de materialidade, de materialidade que pensa. Não é objeto, mas sujeito pensante.

O poder do artista introduz um sujeito pensante no mundo, que é autônomo em relação a seu próprio criador. Algo condensando em si mesmo um pensamento, e esse pensamento não pertence ao criador: pertence à obra.

Temos a tendência de imaginar que o pensamento da obra é o pensamento do artista. Não é. Ela é seu próprio pensamento, que não se confunde com o do artista que a produziu. Pode mesmo negar as intenções e concepções do artista e contradizê-las.

Giorgio Vasari, que fundou a história da arte no Renascimento, estabeleceu o modelo de estudar a arte pela biografia dos criadores. 

Foi Johann Winckelmann, no século 18, obrigado a lidar com antiguidades romanas, restos arqueológicos anônimos em sua grande maioria, que inverteu o procedimento: com ele, a compreensão primordial vem das obras. Uma revolução que instaurou a história contemporânea das artes.

A cisão entre artista e obra tem consequências importantes, entre elas a de esvaziar a autoridade do artista. Como criador, é um demiurgo que está na gênese. O mundo que inventou, porém, passa a viver por si só. 

O espírito romântico nos marcou, quando acreditamos de modo incorreto que o artista “exprime” sua alma, seus sentimentos, em sua criação. E quando pensamos que tem um poder natural sobre o que produziu. 

O artista, porém, é um médium para o autor, que está dentro dele, mas que não se identifica com ele. O artista não exprime nada, mas fabrica expressão. É útil termos dados biográficos do criador para compreendermos a gênese da obra. Mas, além desse ponto, a obra passa a se exprimir por si mesma. Pode mesmo negar o dado genético, porque está falando de outra coisa.

Em consequência, a leitura que um artista faz de sua própria produção é apenas uma a mais, ao lado de qualquer outra. Porque, neste caso, está se servindo de conceitos, encadeamentos lógicos, que são iguais aos de qualquer um. Courbet pode dizer: pintei essa truta porque era grande e bonita. Mas todos temos o direito de perceber outra coisa nela.

Um comentário, quando é original e pertinente, ilumina a obra de maneira nova. No entanto, é forçosamente limitado, já que as significações são inesgotáveis. A obra provoca comentários, discussões, que se alteram ao infinito, conforme o analista, seu universo cultural, a geração à qual pertence. 

Qualquer análise, é evidente, necessita rigor. Não devo manifestar o que vejo na obra, mas o que a obra diz para mim. As boas análises não usam as artes para estimular o imaginário: isso é bom para o artista criador, que pode inventar suas obras a partir das de outrem. 

Não é bom para o analista, cujo objetivo é compreender aquilo que vê, assiste, ouve ou lê. Para o analista, há uma ética da obra, que impõe parâmetros a serem interpretados. Essa ética não deve ser desrespeitada, sob pena de se instalar o arbitrário.

É comum ouvir a pergunta: qual era a intenção do artista? Resposta: seria interessante saber, mas, na verdade, não importa muito. Ou: o artista pensava mesmo isso que se escreveu sobre ele, ou que você está dizendo? Talvez não. Na verdade, mais uma vez, não importa. A obra está pensando.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.