Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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A barbárie pode acometer violenta ou se infiltrar por brechas

Com tanta desgraça, por que se incomodar com desrespeito a uma obra de arte?

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Dentro da sala do Theatro Municipal de São Paulo há uma esplêndida escultura. Uma frisa muito grande, coroando, no alto, a abertura da cena. Seu autor foi Alfredo Sassi, milanês.

Vênus, nascida das águas, encarna a beleza. Um bando de ninfas, oceânides e náiades graciosas, dançam a sua volta. Dois admiráveis personagens masculinos estão dispostos nas extremidades.

Richard Santiago Costa, autor do melhor e mais aprofundado estudo jamais escrito sobre o Theatro Municipal, a descreve assim: “O tom otimista dessa dança de reverência é reforçado pela cumplicidade que essas ninfas compartilham, olhando-se mutuamente com rostos avivados por múltiplos sorrisos. O fundo dourado é o prenúncio da aurora, o sol mítico de Apolo que reflete as luzes do interior da sala para todos, tocando-os com o maravilhamento da presença da deusa, destinada a presidir as manifestações artísticas do palco paulistano para todo o sempre”.

Pois essa esplêndida escultura, que deveria ser orgulho do teatro, vem sendo maculada com a instalação persistente de duas enormes caixas de som pretas, penduradas bem em frente a ela. Feias, elas obliteram a vista dessa aurora das artes. Quebram a harmonia da sala, lugar de alta beleza. 

Imaginaríamos um outdoor tapando o Monumento às Bandeiras?

 

As obras musicais apresentadas no Municipal são acústicas, excluindo amplificação artificial. Afora casos bem raros de composições contemporâneas que exigem esses equipamentos, as caixas são inúteis. E, mesmo que fossem necessárias, seria imperativo buscar uma solução melhor do que aqueles infames penduricalhos.

 

Fico pensando: diante de tantas desgraças que nos assolam, por que cargas d’água ficar incomodado com uma coisa tão microscópica como o desrespeito a uma obra de arte? O que é tal minudência comparada a catástrofes nada naturais, em que barragens arrebentam e matam centenas porque a segurança não foi observada ou, pela mesma razão, um clube deixa morrer torrados dez adolescentes? Ou às milícias assassinas? Ou a esse serpentário enlouquecido que desgoverna o país?

É que a barbárie pode acometer violenta ou se infiltrar por brechas. Não digo que os administradores do teatro sejam bárbaros. Digo que aqui e ali se vai cedendo, e pequenas brechas vão se abrindo.

Desrespeita-se uma obra de arte sem más intenções, por razões que, sei lá, devem existir em algum lugar, mas que, nos fatos, não desculpam o desrespeito. E, pouco a pouco, o sentimento da arte e da beleza se embota.

Existem brechas maiores ou menores. Brecha muito mais larga e gravíssima, por exemplo, são os cortes de orçamento para a cultura que o governo do estado de São Paulo promete. 

Ao que parece, houve uma volta atrás na calamidade que seria o desmonte do Projeto Guri, mas, como com políticos nunca se sabe, trago aqui o testemunho que Marly Montoni, estrela do atual canto lírico brasileiro, publicou nas redes sociais: “Como venho de família humilde, o Guri era a única chance de estudar música. E, graças ao projeto, conheci os caminhos para me tornar uma profissional. Hoje vivo dignamente de minha arte, graças à dedicação e ao carinho dos professores deste projeto, que, lá atrás, quando eu não tinha talento, dinheiro nem autoconfiança, me incentivaram”.

A barbárie odeia a cultura e quer destruí-la. Acentuou-se muito. O ensino vem sendo investido pela vontade de enquadrá-lo numa perspectiva instrumental, não reflexiva. As universidades públicas sofrem restrições orçamentárias severas, e o princípio de “a polícia fora do campus” foi há pouco infringido numa prisão ocorrida dentro da USP.

Os ideólogos retrógrados, num tom de ressentimento que revela frustração com suas carreiras, desqualificam as universidades públicas. Em particular, o guia maior do bolsonarismo, que, como uma Dercy Gonçalves da direita, usa retórica recheada de palavrões. Mas Dercy era engraçada e subversiva, enquanto o outro é apenas sinistro e asqueroso.

Esses tristes ideólogos projetam nas universidades públicas seus próprios fantasmas sexuais, pintando-as como lugar deletério repleto de orgias delirantes. Dizem também que elas são “comunistas”, que corrompem o espírito da juventude: uma acusação bem antiga (foi levantada contra Sócrates no julgamento que o condenou à morte), mas ainda atual, como se vê.

A linguagem, a música, as artes, o conhecimento e a cultura são hoje violentados, ridicularizados, negligenciados, porque de fato são eles as grandes forças poderosas contra a barbárie.

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