Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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O Voldemort da Virgínia fulmina o Iluminismo, Newton e Einstein

O universalismo da razão está em baixa nos dias de hoje

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Em tempos de extremismo como os de agora, o cala-a-boca é o argumento mais frequente. O que importa não é debater, mas abafar o outro.

Alguns desses argumentos situam-se aquém da fala. O movimento bate-panelas, atuante em protestos políticos, começou quando Dilma Rousseff falava na televisão. A truculência autoritária desejou impedir a palavra. Há pouco, um grupo em Paraty tentou calar certa mesa com disparos de rojão e de hino nacional remix. Não conseguiu, mas reiterou o princípio de bloquear a expressão do outro.

Há também a vontade de “lacrar”, empregando aqui gíria proibida pelo presidente. Ou seja, a intenção de dar a última palavra e impor o silêncio. Aí, vale tudo: usar de qualquer argumento, mesmo os mais delirantes; criar ou servir-se de notícias falsas; interromper o interlocutor, gritar, gesticular em destempero verborrágico.

As redes sociais facilitam enxurradas de afirmações taxativas, manipuladoras, mentirosas, provocativas, muitas vezes intencionalmente falsas. O presidente da República, seja porque não controla o caos na sua cabeça, seja porque é um espertalhão de maus instintos, ou pelas duas razões juntas, multiplica declarações aberrantes e sem compostura.

Outro meio de emudecer o interlocutor é o argumento de autoridade. Hoje mais forte, ele sempre existiu. Num pedestal garantido por sua posição, origem, idade, função social ou por autoproclamação, toma-se o direito de emudecer quem questiona ou diverge. É a fala que cala.

Tudo isso decerto oferece grande volúpia, provocada pela sensação de poder sobre o outro. As palavras são traiçoeiras, e o velho fabulista dizia que a língua é o que há de melhor e de pior no mundo.

O melhor, porque cria a vida em sociedade, abre as portas do conhecimento e transmite os saberes. Porque consola, encanta; é a mãe da filosofia, da poesia e dos belos contos. Mas também o pior, porque nutre ódios e insultos, atiça vinganças sórdidas, lisonjas e vis oportunismos. É a fonte das guerras, das mentiras e das calúnias.

No século 18, Beaumarchais descreveu a calúnia: não há malvadezas nem horrores nem história absurda nas quais as pessoas não acreditem. 

Diz um velho provérbio: “Calunie, calunie, porque alguma coisa sempre fica”.

Beaumarchais era um iluminista, e só o universalismo da razão encontra ponderação nessa barafunda. Não por acaso, está em baixa nos dias de hoje. Em nome de um espiritualismo duvidoso, o Grande Guru, o Lord Voldemort da Virgínia, entre palavrões e perdigotos, fulmina o Iluminismo, Kant, Newton e Einstein. Em outro extremo, almas bem-intencionadas atacam a grande revolução que o Iluminismo trouxe para o pensamento.

A racionalidade iluminista não é pura abstração, porque inseriu-se na história. Foi considerada um atributo apenas masculino, foi justificativa para a expansão colonial (“civilizar selvagens”) e cometeram-se tantos crimes em seu nome.

É que os ideais abstratos enfrentaram a prova do concreto. Há uma relação dialógica entre ambos, que se processa no tempo. Maurice Agulhon, num estudo exemplar, “1848 - O Aprendizado da República” (ed. Paz e Terra), descreve o modo como República e democracia foram assimilados por grupos diferentes, como mudaram ao longo da história e como exigem constantes interrogações e exames.

“O Sono da Razão Produz Monstros” é o título que Goya deu a uma de suas gravuras, de 1799. A razão não pode dormir. Deve pôr-se em constante vigília sobre todas as coisas e sobre si mesma. Deve integrar, por princípio, todos os modos de conhecimento, todas as formas de inteligência. Não é neutra nem puramente formal nem incólume às pulsões que habitam o ser humano. É muito perigosa quando enlouquece. 

 

Francis Bacon, que rompeu com a tradição das autoridades clássicas como Aristóteles, no século 17, alerta para as dificuldades do conhecimento, mesmo quando aparentemente apoiado por razões: “O entendimento humano, quando uma vez adotou uma opinião [...] atrai todas as outras coisas para apoiá-la e concordar com ela.” 

Por isso é tão difícil debater com mentes previamente convictas, por razões ideológicas, partidárias ou quaisquer outras. Quem acredita que a Terra é plana terá argumentos falsamente racionais, já que partem do irracionalismo provocado por uma convicção íntima.

A honestidade intelectual e ética e seu grande instrumento, a dúvida constante, preservam a razão de seus delírios. Nestes tempos obscuros, mais do que nunca necessitamos das luzes trazidas pela razão.

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