Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Fugi das notícias com livro sobre a São Paulo antiga

Já tenho um destino para minhas férias: levantar todos os pontos sobreviventes da cidade

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“Uma espécie de desespero diante desse ódio, dessas injúrias, dessas ameaças, dessas calúnias que sobem ao céu como um holocausto impuro...”

São palavras de Aurore Dupin, mais conhecida como George Sand. Era uma romancista francesa que usava nome de homem, que se vestia como homem, para poder se impor no meio literário de seu tempo. Escreveu-as em 1848, quando os socialistas foram perseguidos e assassinados na França. Ela própria se viu obrigada a fugir para um fim de mundo chamado Nohan, porque em Paris seria presa.

O trecho que citei está na introdução de um romance idílico: “A Pequena Fadette”. George Sand sentiu-se obrigada a justificar o fato de não tratar de política nessa obra criada em meio à angústia coletiva. Buscou refugiar-se num “bem fugitivo”, num “alívio passageiro”.

Porque ninguém aguenta um pesadelo contínuo, ali, todos os dias, nutrido pelas notícias alucinadas e perversas.

Minha “Pequena Fadette” destes últimos dias foi a descoberta de um livro que saiu já faz dois anos. Nele me resguardei. Seu título é “O Coração da Pauliceia Ainda Bate” (Imprensa Oficial/Unesp, 2017). O autor, José de Souza Martins, é sociólogo, professor da USP, cuja elevada estatura intelectual intimida.

 

Vem escrito num estilo que, ao contrário, é fraterno e acolhedor. Dá inveja. Emprega palavras simples em ordem tranquila, sem efeitos espertos e sem o menor traço do jargão universitário. Dele nasce poesia verdadeira e sutil, impossível de descrever. 

Melhor dar um exemplo, ao acaso. É extraído de um episódio intitulado “O trem das 7:40”, nos anos de 1940 para Bragança Paulista: “Da Lapa em diante começava o interior, cheiro de capim-gordura, casas esparsas, roças aqui e ali, vacas pastando, anúncios do café Paraventi nas estações isoladas. Lá longe, o Pico do Jaraguá viajando em sentido contrário”.

O livro reúne crônicas e artigos escritos para os jornais O Estado de S. Paulo e Folha entre 2004 e 2013. Todos tratam da cidade de São Paulo ou de seus arredores.

Foram organizadas pela cronologia da história: São Paulo colonial, do século da independência, dos tempos românticos, do século 20, para concluir com uma “São Paulo imaginária”, que é, antes, uma São Paulo da memória pessoal.

A memória forma um ingrediente da vasta inteligência que estrutura esses escritos. A ela se acresce erudição infalível e poder interpretativo que é próprio só aos maiores mestres. 

Exemplo: Francisco Morrone esculpiu um “O Semeador” (1956) para a fachada do antigo Banco das Nações, na rua Sete de Abril. Em seu embornal, as sementes foram substituídas por moedas.

O autor lembra que o fundador do banco, Paulo Abreu, era presbiteriano. Sua análise precisa revela uma “leitura calvinista da parábola do semeador”. “Aquela escultura é um monumento à ética protestante e sintetiza o que o sociólogo alemão Max Weber definiu como o espírito do capitalismo”. (É também testemunho da barbárie na qual vivemos. Esse relevo de bronze, grande, pesado, embutido na parede, em pleno centro da cidade, foi roubado depois, em 2015).

A ausência de esnobismo evita ao autor o desdém pelos artistas menos caros à crítica e à história das artes. Demonstrando a bela qualidade de cada um deles, leva-nos a reconsiderá-los, e a perceber como foram expressivos na paisagem urbana de São Paulo, junto a outros que são celebrados, como Brecheret, Portinari, Gomide ou Volpi. 

Apaixonado pelos vitrais tão bonitos que foram instalados aqui e ali, apaixonado ainda pelos cemitérios, não por necrofilia, mas por serem portadores de história e de beleza, o livro traz algumas das mais exemplares análises de obras de arte que podemos encontrar no Brasil. 

Elas são estimuladas por uma sensibilidade que me leva a pensar em Bachelard, sobretudo nas descrições dos espaços e das arquiteturas. Estão muito presentes também nas memórias pessoais, desde a infância difícil e pobre, contadas sem nenhum traço vitimista ou vaidoso.

Sei que só pude oferecer aqui uma ideia bem incompleta desse grande livro de história, modestamente constituído por crônicas de jornal. Mas sei que já tenho um destino para minhas férias: levantar todos os pontos sobreviventes da São Paulo mais antiga, que o livro assinala com precisão, e constituir um roteiro que guiará minhas visitas. 

Enquanto penso em como seria bom se José de Souza Martins, com o conhecimento que possui, se propusesse a constituir um verdadeiro guia completo dessa São Paulo essencial que ele descortina.

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