Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Violência que se acentua vem do encorajamento a atitudes agressivas

O medo não deveria ser do guarda da esquina, mas de quem propaga a peste virulenta

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Neste ano abominável de 2019, os acontecimentos sinistros não cessam.

Há pouco, foram as mortes dos jovens em Paraisópolis, São Paulo, seguidas por outras de quatro pessoas na Ilha do Governador, Rio de Janeiro. Entre elas estava o youtuber Bunitinho, cuja celebridade deu relevo à notícia. 

Esses casos recentes, como todos os que ocorrem e ocorreram, provocam nas autoridades a mesma resposta: averiguação com promessa de punir os responsáveis. Por responsáveis, entende-se quem apertou o gatilho. Muitas vezes são policiais.

Na verdade, eles se transformam em bodes expiatórios. É como culpar o braço, e não a mente. Porque essa violência que se acentua vem do encorajamento às atitudes agressivas. 

O gesto simbólico do presidente da República imita a arma; o painel de seu novo partido é feito com cápsulas de projéteis. O governador do Rio incentivou a mirar na “cabecinha”, o de São Paulo, a atirar para matar. O medo maior não deveria ser do guarda da esquina, mas de quem propaga a peste virulenta que infecta a atmosfera do país.

Nesse clima, os civis também põem mãos à obra. Para ficar nos mais recentes: em Niterói, a moradora de rua Zilda Leandro, de 31 anos, pediu R$ 1 para Aderbal Ramos de Castro, comerciante que passava. A cena foi filmada por uma câmera de vigilância. Aderbal para, Zilda se põe de frente, como se esperasse a moeda que ele tiraria do bolso. Mas o que sai é uma arma. Aderbal abate a pedinte sem hesitação, com um gesto banal. Continua seu caminho, enfiando, tranquilo, a pistola na cinta.

Isso foi no dia 20 de novembro. No dia 11, em Barueri, depois de ingerir uma bebida, provavelmente envenenada, oito moradores de rua foram levados a um hospital. Quatro morreram.

Não é preciso buscar mais exemplos desses horrores que se multiplicam. Por trás deles está a ideia de limpeza pela eliminação, o “bandido bom é bandido morto”; o princípio de que o morador de rua —não produtivo— deixou de pertencer à espécie humana. Tornou-se um lixo repugnante a ser suprimido.

Essa incapacidade de ver o outro no outro, de reduzir tudo e todos a si mesmo, de pautar o mundo pelos próprios valores, é uma característica essencial do neonazismo que prolifera graças à incitação da nova boçalidade ambiente.

Quando um ouvidor-geral do Ministério Público diz que “escravidão, aqui no Brasil, foi porque o índio não gosta de trabalhar, até hoje” (é de se perguntar como uma tamanha anta —com perdão às antas— chegou a um posto tão elevado, que exige os filtros da formação superior e dos concursos públicos), estamos no mesmo âmbito, embora mais genérico.

O presidente da República declarou: “Nossos índios, a maior parte deles, são condenados a viver como homens pré-históricos dentro do nosso próprio país. Isso tem que mudar. O índio quer produzir, quer plantar, quer os benefícios e maravilhas da ciência, da tecnologia. Todos nós somos brasileiros. Por que reservar um espaço sobre uma terra onde você não pode fazer nada sobre ela? Nós queremos o índio fazendo na sua terra exatamente o que o fazendeiro faz ao lado. Podendo inclusive garimpar.” 

Essas frases pactuam com a exploração sem freios do meio natural, ao decidirem que todos os brasileiros devem ser submetidos à lógica perversa do produtivismo predatório. Para legitimar a posse de suas próprias terras, os índios devem torná-las rentáveis.

Claude Lévi-Strauss visitou, em 1935, uma aldeia dos caingangues, no Paraná. Fez uma descrição dolorosa do que viu, em seu livro “Tristes Trópicos”, pois os índios, com população muito reduzida, estavam na miséria. Ocorrera, porém, uma tentativa para civilizá-los. Inutilmente. 

“Construíram casas para eles, e eles viviam fora delas. Esforçaram por fixá-los em aldeias, e eles permaneciam nômades. Quebraram as camas para fazer fogo e dormiam no chão. Os rebanhos de vacas enviados pelo governo vagavam soltos, os indígenas repeliam com nojo suas carne e leite.” 

Abandonaram também as armas de fogo, preferindo caçar com arco e flecha. Lévi-Strauss refere-se ao “modo secreto” pelo qual, apesar da miséria e do genocídio que os reduzira a um punhado humano, eles mantinham, no cerne, o essencial de suas culturas. 

O presidente da República propõe a morte do índio pelo assassinato da cultura que é a deles. Não aceita os seres humanos fora do modo de vida ao qual quer obrigá-los. Ao mesmo tempo —basta lembrar os guajajaras trucidados agora— o massacre dos indígenas e de suas lideranças prossegue, enérgico e sangrento.

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