Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Artistas de maior projeção hoje lembram os bobos da corte dos antigos reis

Sua galhofa e cinismo estratégico faltam ao autor anônimo do peru metálico do mercado de Campinas

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Esta é a minha primeira coluna dos anos 2020 que começam. O horóscopo me aconselha a não tomar qualquer iniciativa, o que é bom alvitre.

Ontem foi a ceia de Natal, com peru, porque eu queria celebrar a ópera composta por Leonardo Martinelli, sobre libreto meu. Foi livremente extraída de um conto de Mário de Andrade intitulado “O Peru de Natal”. Estreou no mês de dezembro, no Theatro São Pedro, em São Paulo. Teve ótima interpretação, regência e montagem.

Bati vários supermercados a procura de um peru que não viesse condimentado. Não achei: todos eram encapados em plástico e já preparados. Paciência: as mãos inspiradas da Glória, que manda aqui em casa, souberam como retemperar, e não me lembro de ter comido um peru tão bom. Sem contar a farofa, feita com a receita que Mário de Andrade deixou no conto: ameixas, nozes e xerez.

Acabei comprando o bicho no Mercado Municipal de Campinas. É um lugar muito simpático, com população meio desconfiada, mas que, depois das primeiras contradanças impostas pela cortesia, torna-se muito simpática.

Atrás do mercado há uma loja de artigos para umbanda e candomblé. Lá, no chão, todo empoeirado e com teias de aranha, em meio a incensos intitulados “Defumador Atrativo do Amor”, “Chama Dinheiro” ou “Chora aos Meus Pés”, descubro um galináceo feito com restos mecânicos: rodelas, arruelas, engrenagens etc. O bico é uma chave inglesa cujo cabo se prolonga em crista: um achado à la Picasso. Ele tem altivez e o movimento gingado do galo e do peru. Os olhos são fixos como os da ema.

A foto mostra uma ave feita de peças de metal, como parafusos, engrenantes e uma chave inglesa, que lhe serve de crista; é um peru que Jorge Coli comprou no mercado de Campinas quando saiu para comprar um peru para a ceia de Natal
O peru feito de peças de metal adquirido pelo colunista em loja de artigos religiosos no Mercado Municipal de Campinas - Acervo Pessoal

Pergunto na loja quem seria o autor. Ninguém sabe. O preço é uma pechincha. Fui buscar um peru sem tempero e achei outro de metal. Trouxe para casa. Sobre a mesa, ele cria uma aura dominante em volta de si.

Um amigo diz que, numa galeria chique dos Jardins e com um nome promovido de autor, o bicho imporia um valor alto. É verdade. Mas não basta a qualidade da obra, pois o mercado das artes funciona como um jogo de crendices e de estratégias.

Gosto daquela banana colada na parede com uma fita adesiva e que foi vendida por não sei quantos milhares de dólares. Maurizio Cattelan é o seu autor: um artista inventivo, provocador, humorista e inteligente. Para ele, nada deve, nem pode, ser levado a sério. 

As hierarquias sociais são uma balela, que Cattelan não para de denunciar. 

Quando a Universidade de Trento lhe outorgou o título de doutor “honoris causa”, fez um discurso que é um modelo de irrisão. Entre outras coisas, diz: “Minha professora ficava com raiva porque eu nem tinha a malandragem de copiar dos melhores alunos. Como podem ver, sou um modelo ruim. [...] Para mim, esse diploma não é uma promoção: não sou eu quem se eleva, talvez sejam os professores que decidiram se desclassificar, rebaixando-se ao meu nível. E me parece um bom sinal: uma maneira de chegar mais perto, embaralhar as cartas”.

É muito sadio desmascarar, rir, ironizar, perturbar, sobretudo quando isso rende tanto dinheiro. Cattelan é também autor de uma escultura, “La Nona Ora”, na qual um meteorito esmaga o Papa João Paulo 2º, e de uma outra, “Him”, em que Hitler, com corpo de menino, ajoelha-se, orando. Antes da banana, grudou na parede seu próprio galerista com fitas adesivas: fez disso uma foto da qual cada exemplar, numa tiragem limitada a dez, vale entre 250 e 350 mil dólares.

Cattelan, como Koons, Hirst ou Murakami, como os artistas de maior projeção hoje, lembram os bobos da corte dos antigos reis. Estão lá para zombar de nós, pôr o dedo na ferida, lembrar-nos de coisas incômodas que gostaríamos de esconder. Ao mesmo tempo que vivem das benesses concedidas pelos bilionários de nossa sociedade atual, como os bobos viviam —muito menos bem, é verdade— das larguezas dispensadas pelos soberanos entediados.

A galhofa e o cinismo estratégico manipulando o mercado são parte dos elementos que esses criadores empregam para fabricarem suas artes.

Eles associam componentes inesperados entre si, como —em espírito arcimboldesco— fez o autor anônimo do peru campineiro. Mas acrescentam a provocação crítica e o efeito de impacto sobre o mercado.

Quanto aos anos 20, que começam tão sombrios, e ao meu horóscopo, que aconselha passividade, lembro de uma frase escrita por Alberto Torres em 1918: “Pelo que, o melhor que podemos fazer ainda é cruzar os braços, e ir acompanhando, fase por fase, como curiosos, o instrutivo fenômeno da putrefação geral”. Do qual a banana de Cattelan, apodrecendo da parede, virou um símbolo.

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