Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Se não houver oposição que combata como força coesa, nada mudará

Quando ouço alguém dizer 'não adianta criticar', penso no livro 'A Guerra das Salamandras'

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Um livro deveria estar em todas as cabeceiras: “A Guerra das Salamandras”, de Karel Čapek. Editado entre nós pela Record, foi escrito em 1936. Mostra transparente atualidade nos dias que correm.

Čapek era tcheco. Foi criador, por ideia de seu irmão, da palavra robô, que significa, em tcheco, trabalho, trabalho pesado ou obrigatório. No título de uma peça de teatro, ele lhe conferiu o sentido de humanoide mecanizado. Nela, denunciou a desumanização promovida pela sociedade industrial.

Em 1922, escreveu o romance “A Fábrica do Absoluto” que, creio, não existe hoje disponível em edição brasileira. Nesse romance profético, narra uma operação atômica que afeta o misticismo humano, propagando-o como fé tóxica. As religiões e seitas se multiplicam, desencadeiam revoltas lideradas por pregadores alucinados e guerras sanguinárias. Qualquer semelhança com os nossos tempos não é mera coincidência.

 

“A Guerra das Salamandras” constitui-se como sátira premonitória. Essas salamandras são Tritões, grandes lagartos inteligentes descobertos no oceano Pacífico.

Primeiro, são explorados como mão de obra escrava e tratados com crueldade. Depois, progressivos e calmos, mas sem hesitações, tomam conta da terra, eliminando a humanidade porque transformam o planeta num habitat aquático perfeito para eles próprios.

O livro faz pensar na irresistível ascensão dos regimes totalitários, em particular do nazismo, porém não se reduz a isso, pois ultrapassa a sátira mecânica. Põe em evidência as contradições, os mais baixos interesses econômicos, os oportunismos e preconceitos indecentes, as covardias egoístas, as estratégias políticas incapazes de perceber o quanto a união para vencer o inimigo é necessária. Perdidos em seus enleios, em suas cobiças, em suas vaidades e individualismos, a humanidade perde a guerra.

As alusões são muitas, e nada mecânicas. O avanço das salamandras lembra o do nacional-socialismo sobre a Alemanha e a Europa, que parecia invencível. Mas as salamandras não são uma metáfora, ou uma caricatura, do nazismo. Por exemplo, são delicadas e corteses, nada violentas. Apenas implacáveis no seu domínio sobre o planeta. Lembram ainda os Morloks de H. G. Wells, em “A Máquina do Tempo” (1895), evocando as camadas oprimidas e exploradas da humanidade.

A ironia do livro, e seu humor, acentuam a complexidade do que, de outro modo, seria apenas uma tragédia pavorosa. Com gênio, Čapek introduz o riso para retratar a loucura humana. Um exemplo, de que gosto muito: diante do caos anunciado, há um debate para saber se as salamandras, ou Tritões, têm alma. Čapek inventa as seguintes declarações feitas a respeito por algumas célebres personalidades da época. “Nunca vi um Tritão; mas estou convencido de que os seres que desconhecem a música não têm alma. Toscanini.” “É certo e seguro que não têm alma. Nisso coincidem com o homem. O vosso G. B. Shaw.” “Não têm sex-appeal. Por isso não podem ter alma. Mae West.” “Possuem uma técnica e um estilo interessante de natação; podemos aprender muito com eles, sobretudo a nadar em longos percursos. Johnny Weissmuller.”

Čapek morreu em 1938. Não viu sua terrível profecia realizar-se na Segunda Guerra Mundial. No entanto, como a humanidade não conseguiu se extinguir, seu livro continua verdadeiro.

Quando ouço alguém dizer “Não adianta criticar”, referindo-se aos grotescos donos do poder hoje em dia, as salamandras de Čapek me vêm ao espírito. Não adianta criticar, porque as críticas não pegam. Elas se dissolvem numa atmosfera mefítica maior e pior do que as pessoas. Essa atmosfera não é apenas brasileira, embora tenha se concentrado muito no Brasil, país hoje na vanguarda do horror.

Quero dizer que, pior do que os homens, pior do que as circunstâncias, são os valores e convicções reinantes que se disseminam como miasmas, como pestilência. Não há refúgio: no final do livro, os tchecos, longe do mar, acreditam-se seguros, até que uma salamandra aparece, subindo o rio Moldava.

As crenças perversas atingem os comportamentos que se modificam de modo imperceptível, e o horror acomoda-se, aos poucos, como “normalidade”. As críticas continuam inócuas, porque a peste não se altera com críticas.

Enquanto não houver oposição que se una e combata como força coesa, capaz de resistir e, mais, de vencer, nada mudará. Enquanto se dispersar e enfraquecer em pequenas estratégias políticas e eleitoreiras, enquanto permanecer em suas divisões, as salamandras serão triunfantes.

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