Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Pulsão de morte de Bolsonaro nos afasta da antiga ficção de país do futuro

Explosão de demônios interiores também cerca exposição de Ivan Serpa, que transitou entre a razão e o pesadelo

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Creio que foi o senador Renan Calheiros quem associou o atual governo à pulsão de morte. Com o número desesperante de atingidos e assassinados pela Covid ao qual o país chegou, a fúria do morticínio atesta essa vocação para o extermínio de si próprio graças a um negacionismo criminoso: o Brasil não é mais um país, é uma imensa chaga.

Mas esse filme de terror, real infelizmente, não começou agora. A pulsão já estava lá, desde a campanha para as eleições de 2018, com a arminha, com os gestos de metralhadoras, com as ameaças de morte aos opositores, quaisquer opositores.

Portanto, essa pulsão de morte não é só do governo, mas dos milhões de eleitores que aderiram a ela. Teria ficado incubada em outros momentos? Seríamos um país com vocação para esse desejo mortífero, suicida, voltado contra si próprio; uma vocação predominante, que impede a realização plena de uma sociedade harmoniosa, próspera, equilibrada?

Estamos muito longe daquela ficção antiga de um Brasil feliz, carnavalesco, animado, cheio de música, em que viviam habitantes cordiais, amenos e sem violência. Anunciava-se —e Stefan Zweig escreveu um livro com esse título— “Brasil, um País do Futuro”. Essa palavra, futuro, continha em si uma vibração positiva.

O futuro chegou, e nós nos descobrimos como um país autodestrutor, suicida —como foi suicida Zweig, que se matou em Petrópolis, no ano de 1942, em plena guerra. Deprimido, ele escreveu uma nota serena em que dizia seu amor pelo Brasil, mas que não suportava ver sua “pátria espiritual, a Europa, destruir-se a si própria”. E concluiu, com elegância: “Deixo saudações a todos os meus amigos, que talvez vivam para ver o nascer do sol depois desta longa noite. Eu, mais impaciente, vou embora antes deles”.

O suicídio de Zweig foi refletido. O acometimento que faz o Brasil estraçalhar as suas próprias vísceras é cego, furioso, monstruoso.

A ideia de um Brasil habitado pela pulsão de morte surgiu de um amigo, numa conversa, antes da declaração de Calheiros. Há ideias e sentimentos assim, que estão no ar, e que alguns captam.

Essa conversa ocorreu quando visitávamos a exposição "Ivan Serpa: a Expressão do Concreto", que está no Centro Cultural Banco do Brasil, na rua Álvares Penteado.

A visita foi num sábado, e isso tem alguma importância. Durante a semana, por mais que a epidemia tenha assolado o comércio que ainda subsiste por ali, há sempre movimento e vida organizada.

No sábado, o centrão é dominado por uma população sem eira nem beira, dolorosa, abandonada, habitantes de uma cidade muito rica, mas que não atenta para aqueles que ficaram por conta. Vivem como podem, drogam-se quando podem, no meio de pregações histéricas de neopentecostais. É uma visão de inferno.

A exposição "Ivan Serpa" é excelente, com obras muito bem-escolhidas, dispostas num percurso claro e expressivo. Eu me apresso aqui em dar o nome dos curadores —Hélio Márcio Dias Ferreira e Marcus de Lontra Costa— responsáveis pela mostra.

Serpa é um grande artista, e todas as suas obras revelam um nível muito alto. Os curadores tiveram o cuidado de organizar segundo a coerência do momento criador, que varia muito de período a período. Seria difícil atribuir a um mesmo artista obras tão diferentes, opostas mesmo: a primeira impressão talvez seja de vários em um.

Mas a clareza da mostra faz perceber que há como um balanço de pêndulo, no qual o artista vai do mais expressivo, com imagens tremendas, inquietantes, saídas de um pesadelo em que o gesto impulsivo cria seres monstruosos, à busca do equilíbrio abstrato e geométrico, passando por admiráveis telas feitas de puro lirismo em que o pincel percorre com amor e com cores as superfícies.

Esse balançar entre dois extremos sugere a angústia de buscar um controle das pulsões pela ordem da geometria e, no oposto, a explosão dos demônios interiores. Goya escreveu que o sono da razão produz monstros. Com Serpa temos, em alguns períodos, a razão; e, em outros, seu sono ou seu pesadelo. Por trás da ordem, há a angústia de conter demônios.

A pulsão de morte nas obras de Ivan Serpa é, portanto, ou expressa ou reprimida. Ela vem, por vezes, acompanhada de uma violência sexualizada muito assustadora. Mesmo em momentos de ordenação, o erotismo se mostra: talvez Serpa tenha sido o único artista a ter conseguido empregar os princípios da op-art de maneira voluptuosa: foi o que ele chamou de “Série Op-Erótica”.

Há um catálogo online em que as obras da mostra estão reproduzidas.

Nada substitui, porém, a percepção direta das obras. A exposição "Ivan Serpa" vai até o dia 2 de agosto.

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