Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli
Descrição de chapéu cracolândia drogas

Lucro fenomenal na cracolândia mostra por que é impossível eliminar drogas

Com seu realismo prático, mundo paralelo do tráfico sabe se moldar a tentativas simplistas de repressão

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A cracolândia funciona muito bem. Fiquei espantado diante da eficácia desse funcionamento, lendo a matéria “Feira da droga na cracolândia tem 'área VIP' com segurança”, de Alfredo Henrique, publicada no Agora.

A polícia monitorou a rotina dos traficantes e usuários por seis meses e constatou uma estrutura muito eficaz. Quem tem mais dinheiro pode ir para quartos em edifícios abandonados, com diversos graus de conforto. Custam 10 mil ou 15 mil por semana, conforme as comodidades: colchão, televisão, entrega de alimentos e, está claro, abastecimento em drogas.

O fluxo geral de usuários da cracolândia vai de 500 a 600 durante o dia e chega a 2.000 à noite. A segurança, feita pelo crime organizado, julga e executa conforme o que foi transgredido e sentencia expulsão, espancamento ou morte.

Os pontos de venda têm um giro de até 500 mil reais por semana, pagando 120 mil para a organização criminosa que “aluga” os locais. Há uma feira paralela de objetos roubados. Há lugares destinados ao descanso de traficantes e a pontos de prostituição. Há até a musa, a Gatinha da Cracolândia, moça bonita suspeita de tráfico de drogas.

Tudo isso é muito eficaz porque esse sistema não se preocupa com princípios ou grandes ideias: ele é eminentemente prático. Sabe moldar-se de modo admirável às situações; estrutura e resolve a partir de enfoques concretos.

Ao contrário, a intolerância em relação às drogas parte de um princípio moral genérico, simplificador e sentimental. Raciocina-se assim: as drogas são ruins. Devem ser proibidas e combatidas. O imaginário coletivo atribui a elas os piores males e tem o sentimento de que devam ser extirpadas. São, portanto, condenadas e objeto de repressão que, evidentemente, não funciona.

Além de não funcionar, engendra consequências negativas: a corrupção da polícia e mesmo dos meios políticos, a insegurança, criada pelo fortalecimento da criminalidade, e, enfim, o próprio mercado ilegal, que só existe por causa da política de proibição estrita, mecânica, brutal, empregando uma repressão que não vai muito além da arraia-miúda dentro do tráfico.

Sabe-se como a Lei Seca, nos Estados Unidos, fez com que o crime organizado se desenvolvesse. Khalid Tinasti, diretor da Comissão Global de Política de Drogas, de Genebra, publicou um artigo no jornal Le Monde, no dia 24/7, em que aponta o desastre das políticas atuais contra drogas: “Se o álcool tivesse sido classificado como substância aditiva e perigosa no final da Segunda Guerra Mundial, ele teria certamente um mercado ilegal importante e incontrolável hoje. O das drogas ilegais é estimado em 500 bilhões de dólares anuais beneficiando, em prioridade, o crime organizado”.

Sabemos que não adianta atacar o local em que se concentram as vendas. Não há boa resposta curta para problema tão complexo. Em seu realismo prático, esse mundo paralelo a regras oficiais é plástico: se alguém aperta aqui, ele espirra ali. Quando expulso, encontra outro lugar para funcionar, simplesmente porque há sempre pessoas que querem drogas e não ficam sem elas.

Enquanto houver pessoas dispostas a pagar, o mercado vai existir. Fantástica eficácia pragmática do mundo do crime. Recusa do enfrentamento —no sentido preciso da palavra, pôr-se de frente— ao problema, por parte da sociedade. Isso leva à convivência com mundos que não necessitam das leis e das regras oficiais para viver e prosperar.

Tal situação é fruto do horror abstrato e sentimental que as drogas causam em nossas sociedades. Sentimos como um problema pavoroso: não queremos nem ver isso, a polícia resolve.

Pois é, não resolve. Põe apenas a situação em uma realidade paralela que equaciona muito bem seus problemas logísticos, com lucros fenomenais.

Algumas entidades generosas buscam aliviar o sofrimento das pessoas que vivem na cracolândia. É um trabalho mais que louvável, mas, está claro, sozinhas elas não resolvem o problema.

A eliminação pura e simples das drogas é impossível. Ela desenvolve apenas a eficácia dos sistemas criminosos, que terminam sempre por encontrar alguma saída. É um problema que ultrapassa, de longe, a população consumidora para atingir toda a sociedade.

As reações instintivas diante das drogas impedem a reflexão e o debate sereno. Fora das crônicas policiais, dos fatos chocantes, há pouca discussão a respeito nas mídias; as campanhas de esclarecimento oficiais são pífias, quando existem; experiências sérias não são tentadas.

Ao contrário, o tema da segurança se acende nas campanhas eleitorais, com promessas milagrosas e rápidas, que só existem para conseguir voto. Uma das plataformas de Doria para a Prefeitura de São Paulo foi acabar com a cracolândia em dois tapas. Hoje, como indica a matéria, a cracolândia vai muito bem, obrigado —reservando aposentos VIP para quem pode pagar.

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