Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli
Descrição de chapéu Semana de 1922

Nacionalismo da Semana de 22 é um mito

Projeto nacionalista da geração de modernistas, posterior ao evento, vingou por ser útil à dominação social

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A Semana de Arte Moderna faz cem anos. Em seu forte papel sinalizador, amplificador e polarizador, ela tornou-se mítica e encerra muitos mitos.

Um deles é o nacionalismo, por dupla razão.

Ao contrário do que muitos pensam, a Semana não foi nacionalista. No campo da música, basta verificar os programas que foram apresentados no Theatro Municipal de São Paulo para constatar que não havia ali um espírito que aspirasse à nacionalidade. Villa-Lobos, a personalidade musical criadora mais poderosa presente, até então não escrevera música que, de algum modo, buscasse um qualquer caráter nacional.

Até a década de 1920, Villa-Lobos compusera música essencialmente francesa. As obras proclamadas como nacionalistas antes desse período, como é o caso de "Uirapuru" e das "Cirandas", foram antedatadas —ou seja, o compositor atribuiu datas anteriores às reais, para afirmar-se como nacional desde suas origens.

Mário de Andrade denuncia a datação "espiritista", como diz, de Villa-Lobos —sobretudo quando o compositor afirma que não havia "escrito no papel", mas que já estava com a obra na cabeça havia muito tempo.

Essas datações imaginárias serviam a Villa-Lobos para elaborar a lenda sobre si próprio de um compositor embebido em brasilidade desde sua mais tenra juventude. A elas se acompanha a construção de uma mitologia pessoal nacionalista muitíssimo imaginária.

Mário de Andrade raciocina a respeito do fato de Villa-Lobos não ter apresentado nenhuma obra de caráter nacional durante a Semana:

"Ora, é muito fácil de compreender que em ocasiões como a Semana de Arte Moderna [...] Villa-Lobos buscasse apresentar o que tinha de mais seu, de mais excepcional e de melhor. E de mais brasileiro, num caso como o da Semana de Arte Moderna, em que se tratava [...] de trazer ao Brasil a mensagem da remodernização de suas artes. Não é crível nem admissível, pois, que o compositor escolhesse para se apresentar [...] inéditos cheios de europeísmos sintáxicos e mesmo debussismos vocabulares muito fáceis e numerosos de achar em todas as obras aparecidas nos concertos de Villa-Lobos até pelo menos 1923. E realmente é desta data, é logo após a Semana de Arte Moderna, que o compositor principia se preocupando, com a solução nacional de sua música e se atira ao aproveitamento da verdade".

Mário de Andrade, aqui, parece atribuir à Semana o estalo que levou Villa-Lobos a se tornar nacional, mas a explicação é outra. O grande musicólogo finlandês Eero Tarasti, analista muito agudo e original de Villa-Lobos, assinala o momento da gênese da inflexão nacionalista na obra do compositor.

Tarasti escreve, num artigo de 1980: "Ao visitar Paris e o restante da Europa, na década de 1920, Villa-Lobos compreendeu qual era a posição social do compositor na Europa naquele momento: ele interessava ao mundo europeu acima de tudo como intérprete de brasilidade, com os ritmos de força primitiva de suas composições, harmonias próprias, melodias folclóricas e tons musicais que refletem a variedade de cores do trópico".

É esse Villa-Lobos exótico na Europa (o "néo-sauvage", como dizia dele o compositor Florent Schmitt), depois nacionalista oficial do Estado Novo, que corrige e reconstrói seu passado.

De fato, a Semana de Arte Moderna não foi nacionalista. Nem mesmo Mário de Andrade havia produzido até então obras nacionalistas.

Em 1922, sua "Pauliceia Desvairada", não tem essas intenções. A São Paulo que ele descreve ali é "minha Londres das neblinas finas", e seu prefácio interessantíssimo, programático, não tem a menor proposta de projeto nacional. Mesmo em 1925, "A escrava que não é Isaura", reflexão, explicitação do que seria a criação poética moderna, vem recheada de longas citações em francês e italiano e não faz alusão alguma a qualquer programa nacional.

No entanto, os modernistas, logo depois da Semana incorporaram o projeto nacionalista. Essa inflexão ocorre nos últimos anos da década de 1920.

Em 1924, o "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", de Oswald de Andrade (livro "Pau-Brasil", poesias, 1925); em 1926, O Movimento Verde-Amarelo ("A Anta e o Curupira" de Plínio Salgado —futuro fundador do integralismo, ou seja, movimento de inspiração fascista, fascismo verde-amarelo se se quiser). Enfim, o "Manifesto Antropofágico" de Oswald, em 1928 —o modo mais inteligente, mais complexo, de incorporar a ideia de nacionalismo.

Houve uma centralização, por parte dos modernistas, de um Brasil-nação. Como em "Macunaíma", a fórmula é ir catar diversos elementos no país inteiro para fundi-los numa pátria só. Na verdade, o Sul faz um blend de exotismos para fabricar um Brasil moderno e nacional, que iria servir tão bem aos projetos do Estado Novo.

Há um deslumbramento pelo exótico local: o paulista urbano Mário de Andrade busca elementos em regiões e culturas distantes, com as quais ele tem tão pouca vivência quanto com as de quaisquer outros países. Mas o recorte geográfico da nação impõe uma cultura una para um povo fraterno.

As célebres grandes e poucas viagens de Mário de Andrade pelo Brasil e para descobrir o Brasil, em companhia da fina flor paulista, fazem parte do surto nacionalista desses anos. Elas mostram como o projeto nacionalista (seja ele romântico ou moderno, não importa) é um construto sobre um autêntico muito duvidoso.

Essas viagens de Mário de Andrade são bem parecidas com expedições científicas que governos europeus mandavam ao Brasil no século 19 ou com os viajantes estrangeiros em busca de aventuras e de estranhezas em terras bárbaras.

São claras as indicações de que esses nacionais-modernistas investiram, com os meios que possuíam, na construção cultural de uma nacionalidade. Construção que teve um futuro próspero, chegando até hoje. Apenas, o programa nacionalista fez com que se esquecessem de indagar alguns pontos: o que é nacionalidade? O que é nação?

Teve um grande aspecto positivo: o entusiasmo e a fé vibrantes que provocou nos criadores permitiram grandes obras, mas o nacionalismo desses modernistas vingou por ser uma posição ideológica confortável, por ser útil como instrumento político e de dominação social.

Reforçado pelo espírito autoritário veiculado pela modernidade —e esta questão, a do autoritarismo, própria ao espírito moderno, é outro ponto crítico—, significou uma série de exclusões: a da cultura trazida pelo grande número de imigrantes que chegavam; a de formas artísticas universais que afastassem a modernidade brasileira de seu projeto nacional, erigindo modos menos audaciosos em termos de experiências criadoras.

Enfim, nossos modernistas ignoraram (ou mesmo, de fato, souberam) o quanto essa ficção, a do construto nacional, foi cúmplice de um Estado ditatorial. O quanto esse projeto constituiu uma ideologia que unificava um "ser brasileiro" para além das condições sociais, para além das classes, transformando-o em "um povo todo irmão, sem distinção de raça e cor", para lembrar a letra de um samba-exaltação, gênero criado e favorito sob o Estado Novo.

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