Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

'O cinema é a verdade da mentira' e outras notas do meu diário

Apesar de tudo parecer postiço, 'O Homem do Norte' vai tomando o interesse e o falso termina como verdadeiro

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Muitas manifestações sobre a Semana de Arte Moderna, neste centenário, têm sido bem rasas. A mais importante que pude ver: a exposição "Raio que o Parta", no Sesc 24 de Maio, São Paulo. Duzentos artistas, mais de 600 obras explorando a produção fora do eixo Rio-São Paulo ou artistas menos consagrados desse eixo. Formidável esforço e trabalho inteligente de pesquisa.

O que diferencia a Semana de Arte Moderna das experiências modernas que ocorreram no resto do país naqueles anos foi o escândalo. Desde o salão dos recusados, em Paris, que o escândalo foi chancela de modernidade. Os modernistas se prepararam e provocaram o escândalo artístico. "Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na história da arte brasileira", escreveu Mário de Andrade a Menotti del Picchia em fevereiro de 1922.

Caminho pelo centro de São Paulo. Deixo meu celular no hotel. A mais triste miséria humana invadiu a cidade, que naufraga num esgoto pestilento. E nós, que naufragamos na cultura insensível da barbárie.

Ida a um shopping de luxo. Um choque. Classe média enriquecida passeia cachorrinhos, instrumentos de esnobismo. Muita arrogância, muita grosseria. Outra barbárie, complementar à das ruas miseráveis.

Viagem a Buenos Aires. Apesar das dificuldades econômicas, a civilização parece resistir.

Linda praça na frente do Colón. Casais namoram, crianças e cachorros brincam na grama perfeitamente aparada. Domingo bonito de sol. Preguiça e paz. Um herói nacional de pedra discursa em silêncio no topo da coluna alta.

Calle Corrientes cheia de gente. Em cada quarteirão, um grande teatro dando diretamente para a calçada e, pelo menos, duas livrarias. É impossível avançar rápido.

É uma embriaguez estar no teatro Colón, tão grande, tão harmonioso, tão cuidado. A ópera é "O Cônsul", de Giancarlo Menotti, escrita em 1950, sobre a opressão burocrática. Muito emocionante, tudo. Nela, canta o barítono brasileiro Leonardo Neiva.

Vargas Llosa apoia Bolsonaro. Chomsky elogia Trump. Que Putin ajudou a eleger e que apoia Bolsonaro, Marine Le Pen, Orbán e companhia. Jorge Luis Borges apoiou a ditadura militar e foi homenageado por Pinochet.

Decerto, muita gente vai cancelar Llosa e seus livros. O que é uma bobagem nada inteligente. Os livros de Llosa são muito melhores do que ele.

Leio "Água Funda", escrito em 1946 por Ruth Guimarães, autora que não conhecia, para minha vergonha. É um livro maior e deveria estar muito mais presente em escolas e universidades. A escrita incomum é dominada, e a construção, cheia de elipses que vão se articulando, tem forte originalidade. É um meio rural que se mostra por prismas e se conclui tão comovente, excluindo todo sentimentalismo.

O Museu de Arte de Toledo, em Ohio, vende três obras excepcionais: um Cézanne fenomenal, um Renoir e um Matisse. A prática norte-americana dos museus públicos usarem seus acervos como recurso financeiro é abominável para a cultura. O crítico Christopher Knight, no Los Angeles Times, assinala que as obras valem demais para que um museu possa comprá-las.

Conclui assim: "O mercado com fins lucrativos hoje lidera grande parte do mundo dos museus sem fins lucrativos. Mas a missão central do museu é coletar, pesquisar e preservar grandes obras de arte, e uma estratégia conservadora de privatizar bens públicos insubstituíveis em nome do progresso liberal é um atraso. A venda de Toledo é inconcebível".

"O Homem do Norte", de Robert Eggers, autor de "A Bruxa" e de "O Farol". Desde o início, o filme soa tão falso que sugere intenção jocosa, mas não, tudo é para valer. Os vikings falam com um sotaque absurdo.

Curiosamente, apesar de tudo parecer postiço, o filme vai tomando o interesse e a atenção. Nicole Kidmann se impõe, com força inesperada. O falso termina como verdadeiro. O cinema é a verdade da mentira.

Penso em Lobato, nestes tempos de guerras: "A humanidade forma um corpo só. Cada país é um membro desse corpo, como cada dedo, cada unha, cada mão, cada braço ou perna faz parte do nosso corpo. Uma bomba que cai numa casa de Londres e mata uma vovó de lá, como eu, e fere uma netinha como você ou deixa aleijado um Pedrinho de lá, me dói tanto como se caísse aqui. É uma perversidade tão monstruosa, isso de bombardear inocentes, que tenho medo de não suportar por muito tempo o horror desta guerra. Vem-me vontade de morrer. Desde que a imensa desgraça começou não faço outra coisa senão pensar no sofrimento de tantos milhões de inocentes. Meu coração anda cheio da dor de todas as avós e mães distantes, que choram a matança de seus pobres filhos e netinhos". Está em "A Chave do Tamanho".

A cultura norte-americana funda-se no individualismo. A arma é a forma concreta da defesa de si e do ódio ao outro. Em Buffalo, ataque de um supremacista branco a um supermercado, fazendo pelo menos 10 mortos. O assassino estava com um colete à prova de balas, protegido em si mesmo e armado contra o objeto do seu ódio, defendendo suas "convicções". Os Estados Unidos são uma república que excluiu o princípio da fraternidade.

Morre Breno Silveira. Que belo filme, "Dois filhos de Francisco".

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