Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Livro de João M. Salles sobre Amazônia é inclassificável como 'Os Sertões'

Em 'Arrabalde', autor usa inteligência e talento literário para expor ódio de colonos pela natureza

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As notícias e imagens estarrecedoras trazidas pela imprensa sobre a situação dos yanomamis mostram a que degradação chegou a garantia dos direitos indígenas no Brasil. Se o resultado da última eleição presidencial tivesse sido diferente, esse grupo seria exterminado.

Alvaro Gribel, em um artigo do jornal O Globo, informa que o governo Bolsonaro gastou R$ 5,44 bilhões no Programa de Proteção e Recuperação da Saúde Indígena. Desse dinheiro, a entidade que mais recebeu foi uma ONG evangélica chamada Missão Caiuá, que afirma "estar a serviço do índio para a glória de Deus". Nem quero saber de que Deus se trata.

Indígenas e helicóptero da FAB ao fundo na pista de pouso Surucucu, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima - Michael Dantas - 29.jan.23/AFP

Ao que parece, ninguém dessa organização tem entrado nas terras indígenas nos últimos quatro anos. Noticiou-se corrupção entre militares na área. Muito foi gasto em transporte aéreo, cujas empresas pertenceriam aos próprios garimpeiros —os mesmos que envenenam as águas dos rios, os animais e as pessoas com mercúrio e cianeto e "começaram a impedir que profissionais de saúde, antropólogos, sociólogos e agentes públicos frequentassem a região", como testemunha o presidente da Urihi Associação Yanomami, Júnior Hekurari Yanomami.

As mortes, a desnutrição, a pneumonia, a malária e outras doenças que se alastraram entre os indígenas por si só justificariam um tribunal de Nuremberg para o precedente governo brasileiro.

Outra notícia recente sobre a Amazônia foi a identificação do mandante do assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, um traficante conhecido como Colômbia. A atuação de Bruno Pereira na reserva indígena do Vale do Javari, combatendo a pesca ilegal, teria sido o motivo para os homicídios, devido aos grandes prejuízos trazidos para os criminosos.

Esses dois casos, o martírio dos yanomamis e o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, por seu caráter agudo, trouxeram a Amazônia para a pauta das mídias. Há, porém, a corrosão crônica da Amazônia que não cessa.

A visão bolsonarista do mundo privilegia o que é ilegítimo. As leis só atrapalham, e muita gente desconfia delas, porque vivem em um mundo paralelo a elas. Na Amazônia, grileiros, garimpeiros, madeireiros mais ou menos ilegais nem acreditam nas leis nem agem de acordo com elas. Para gente assim, Bolsonaro é um líder ideal de ilegalidade.

Um livro de profundidade incomum foi publicado em dezembro passado. Ele explora a compreensão da floresta amazônica. É "Arrabalde: Em busca da Amazônia", escrito por João Moreira Salles e editado pela Companhia das Letras.

Logo na leitura dos primeiros parágrafos da introdução, "Ver a floresta", fiquei tomado pelo caráter da escrita. Isso pode parecer frívolo, mas não é. Existe uma inteligência do escrever, que define o autor de qualidade. Ela se funde com seu pensamento, não se separa dele.

Logo no início, João Moreira Salles invoca Euclides da Cunha, outro observador da Amazônia. Penso comigo que ambos têm muito em comum. Não no tom: Euclides da Cunha possui a veemência das sinfonias épicas, e João Moreira Salles, a elegância da música de câmara. Os dois, porém, constroem seus livros a partir da observação e da descoberta.

Essas duas qualidades determinam as análises que propõem: nada vem de antemão, tudo é determinado pelo que se vê e se observa na busca de compreender. Ambos partiram de uma atividade jornalística: Euclides da Cunha foi designado pelo jornal O Estado de S. Paulo como correspondente cobrindo a guerra de Canudos, e daí nasceu "Os Sertões" —e sua exploração da Amazônia também foi publicada em artigos de jornal. João Moreira Salles, centrando-se na Amazônia do estado do Pará, fez seu "Arrabalde" a partir de artigos para a revista piauí.

Mostro aqui como a observação conduz as escritas diferentes de ambos:

Euclides da Cunha em "Os Sertões": "E avançando célere, sobretudo nos trechos em que se sucedem pequenas ondulações, todas da mesma forma e do mesmo modo dispostas, o viajante mais rápido tem a sensação da imobilidade. Patenteiam-se-lhe uniformes, os mesmos quadros, num horizonte invariável que se afasta à medida que ele avança".

João Moreira Salles em "Arrabalde": "Logo depois, o que se vê é nada, apenas um deserto produzido pelo homem. O carro poderá avançar por vinte minutos sem que apareça uma só criatura viva. Os poucos bois, quando se cruza com eles, estão aglomerados debaixo da sombra de uma árvore solitária, as costelas à mostra, atordoados pelo sol e por uma existência infeliz".

João Moreira Salles no coquetel de inauguração do Instituto Moreira Salles de São Paulo - Zé Carlos Barretta - 19.set.17/Folhapress

Como "Os Sertões", "Arrabalde" é um livro inclassificável. Parte da exploração de um território: a Amazônia do estado do Pará. Escrito com talento literário, ele não é ficção —longe disso. Tampouco é um estudo universitário, nem um ensaio, nem crônica de viagem. É o fruto de uma inteligência que sabe argumentar, intuir, sugerir, compreender. Ele permite um entendimento da Amazônia com meios bem diferentes dos tratados ou das teses.

À observação, acrescenta o conhecimento científico, histórico, assim como depoimentos humanos, vindos de conversas com políticos, empresários, indígenas: a história contada por Ester Ymeriki Kaxuyana e traduzida por sua filha Vaneusa Tirtiri Kaxuyana de Sousa é um prodígio de narração labiríntica, espécie de parábola sobre a obsessão do retorno ao território de origem depois de uma vida errante. Pela sinceridade, candura e graça poderia ser um capítulo de "Macunaíma".

"Arrabalde" insiste no fato de que nenhuma exploração da Amazônia deu certo, de que a história dos investimentos ambiciosos —a Fordlândia de Ford, o projeto Jari, de Ludwig, a Madeira-Mamoré— foram fracassos utópicos; de que as queimadas e o desmatamento de hoje não conseguem ser substituídos por áreas produtivas ("Ao contrário do que sugere a máquina de propaganda do setor agropecuário, definitivamente não é a Califórnia do agronegócio que se está construindo ali"), mas por desertos.

A razão desses malogros é o desconhecimento da própria natureza da floresta, que impede saber como lidar com ela e como se aproveitar dela. Excetua dois pequenos exemplos: a colônia de Acará, em Tomé-Açu, graças à inteligência de um japonês, Noboru Sakaguchi, que aprendeu a produzir colaborando com a floresta, e a história com um final razoavelmente feliz do município de Paragominas.

Esse desconhecimento da floresta vem com um desprezo: João Moreira Salles sublinha a frase repetida várias vezes por colonos pioneiros vindos de outras regiões: "Quando eu cheguei, aqui não tinha nada". Esse "nada" era apenas o mais complexo bioma do planeta: a floresta amazônica. Esse desprezo situa o colonizador como superior à floresta e a floresta como o odiado inimigo a ser destruído.

O ódio à natureza é uma constante na história deste país colonizado: basta observar as cidades, desde as mais antigas, dos tempos da colônia, ou as unidas pelas ferrovias nos tempos do café em São Paulo, para se perceber. As fachadas são rentes às calçadas, nada de árvores, jardins são canteiros de buxinhos.

O Rio de Janeiro não era diferente: ali onde estava a cidade, a árvore foi abatida, o lugar dela é na ordem científica do jardim botânico. Ainda Brasília é esse triunfo da civilização como ódio à natureza: quem já atravessou os 300 metros que vão da Biblioteca Nacional ao Museu da República em um dia de sol sabe do que estou falando.

Cidades significam sempre um confronto com a natureza; na Amazônia, é uma guerra que se trava. "O sol que hoje nasce em Belém bate numa cidade separada de sua paisagem. Segundo dados de 2012 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Manaus e Belém são as duas capitais menos arborizadas do país", informa João Moreira Salles no interior de uma análise impressionante.

Essa relação conflituosa com a natureza engendra o princípio da terra arrasada para ser usufruída com imediatez e em breve esgotada: "O Derrubador Brasileiro", de Almeida Júnior, é a grande pintura simbólica desse aspecto em nossa cultura, e "Cidades Mortas", de Monteiro Lobato, a sua constatação literária. Apenas na Amazônia, esses traços repetidos tomam proporções de calamidade universal, gigantesca, desmedida, anunciando um verdadeiro inferno seco e árido.

'O Derrubador Brasileiro' (1875), de Almeida Júnior - Divulgação

O desprezo, o ódio, a destruição da floresta amazônica atingem a flora, a fauna e, em particular, a humanidade que convive com ela, que faz parte dela. Os horrores sofridos pelos yanomamis, a destruição física da qual eles foram o objeto é coerente. Como fazem parte da floresta, está claro que precisam ser destruídos. Assim como devem ser assassinados os que lutam por ela.

"Arrabalde", de João Moreira Salles, é um livro notável, que fornece um entendimento aprofundado dos problemas da Amazônia, resultado de séculos de ignorância, de incompreensão e de violência.

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