José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Descrição de chapéu CPI da Covid

Jornalismo vencido

Folha derrapa ao alertar para outra incompetência nacional, vacinas vencidas

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Jornalistas convivem com pequenos terrores. Um deles é cometer erros bobos em situações que podem provocar grandes estragos. Antes da internet, em meados dos 1990, uma tarefa corriqueira e arriscada em Redações era apurar e publicar resultados de loterias. Só um número errado bastaria para transformar um ganhador em perdedor (imagine-o rasgando o bilhete) ou um perdedor em ganhador (imagine-o descobrindo que não ganhou nada). O site da Caixa nos livrou dessa angústia.

Erros acontecem, mas pioram com o tempo se não forem corrigidos. Na era da internet, pós-verdade e que tais, alguns continuam transmitindo a informação errada até mesmo após as correções feitas. Não à toa, um instituto antigo na Folha, o Erramos, é atualmente um padrão em boa parte do planeta de imprensa civilizada.

Se a escala do tempo mudou e exige reação imediata ao erro, sob risco de ver a má informação explorada nas redes, a maneira como se faz a correção também se tornou vital.

São tempos de fake news, estamos a corrigir desinformações a todo instante. Não é mais suficiente apenas reconhecer o lapso, é preciso tentar evitar a todo custo que ele se propague demais. Porque, não importa o que se faça, o equívoco vai se propagar.

A Folha derrapou nesse esforço na última semana. Reportagem publicada na sexta (2) sobre a utilização de vacinas vencidas em 1.532 municípios se tornou o texto mais lido da história do jornal. Continuava entre os mais acessados sete dias após sua publicação.

Na ilustração: dentro de uma seringa transparente há várias letras azuis, na ponta da agulha sai uma interrogação
Carvall

Problema: a matéria estava errada. Sob o título "Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid; veja se você é um deles", dizia que cerca de 26 mil doses de AstraZeneca fora da validade tinham sido aplicadas no país. A leitura do texto dava a entender que isso de fato tinha acontecido, mas, na verdade, listava apenas os registros do Ministério da Saúde. Mas isso é um problema? Prefeituras e analistas, em contato com o jornal e nas redes sociais, afirmaram que os dados oficiais estavam ou poderiam estar errados.

Será? "É bem plausível, pois os dados administrativos de saúde têm muitos problemas de inserção no sistema, diferentemente do que ocorre com os financeiros, registrados com mais cuidado por serem auditados. As prefeituras dependem deles para receber verba", explica Adriano Massuda, do FGV-Saúde, especialista em SUS. "Municípios erram registro de óbito, que dirá de vacinas. Falta coordenação federal, capacidade de gestão. O sistema, exemplo mundial até 2015, vem sendo precarizado."

O jornal não foi insensível às críticas. Ainda na sexta, alterou o título da reportagem para uma formulação mais precisa: "Registros indicam que milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid; veja se você é um deles". Editou ainda, em um texto separado, as contestações de diversas secretarias de saúde citadas.

A polêmica se intensificou no fim de semana, assim como a audiência da reportagem. Na segunda (5), este ombudsman observou na crítica interna enviada à Redação que o jornal demonstrava excesso de confiança nos dados e que apostava alto ao manter o mote de serviço no título da reportagem. Basta trocar o assunto para entender o risco embutido nesse tipo de enunciado: "veja a lista de passageiros do voo que caiu". É evidente o motor do alto interesse no fato.

Na terça (6) à noite, enfim, um Erramos foi publicado. "Versão anterior desta reportagem deixou de alertar que os dados sobre 26 mil doses aplicadas fora do prazo de validade poderiam decorrer de erros no sistema do Ministério da Saúde." Um terceiro texto, no qual o jornal reconhece o erro, foi ao ar na mesma hora.

Na manhã seguinte, a audiência do site escancarou a insuficiência da manobra. O índice de leitura da reportagem-erramos foi logo superado pelo da matéria original, que mantém até agora a isca imprópria em seu título e o tom peremptório de que 26 mil pessoas receberam doses vencidas nos braços. Só que não.

"Tão logo o jornal se certificou de que havia incorreção na reportagem inicial, um novo texto foi publicado com ampla visibilidade relatando o erro. O problema da vacinação ocorrida fora do prazo, de utilidade pública, continuou a ser apurado e foi objeto de reportagens publicadas na sequência", afirma Vinicius Mota, da Secretaria de Redação.

Faz bem o jornal continuar apurando o tema. Teria feito melhor se, no lugar de açodada publicação, duvidasse um pouco dos números do governo e aprofundasse antes a investigação, como duvidou no começo da pandemia e assumiu, em consórcio com outros veículos de imprensa, a coleta de dados sobre casos e óbitos.

As entranhas do Ministério da Saúde estão sendo expostas ao vivo na CPI. Confiar cegamente no que sai de lá não parece prudente. Deixar perpetuar informação não 100% correta menos ainda.

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