José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Descrição de chapéu congresso nacional

O ingrato jornalismo de impacto

Folha vira notícia mais de uma vez em semana de turbulências na CPI

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Um luminar da República disse certa vez que um cabo e um soldado dariam conta do Supremo Tribunal Federal. A confiança nos militares deste país é tamanha que apenas um cabo foi designado para negociar 400 milhões de doses de AstraZeneca, quantidade que resolveria com sobras a imunização de toda a população.

Se uma proposta assim parece claramente um conto da carochinha, é bom lembrar que o governo Jair Bolsonaro acreditou nela. Roberto Ferreira Dias, diretor de Logística do Ministério da Saúde, e um outro militar, coronel da reserva que foi seu assessor na pasta, marcaram um jantar com o improvável vendedor de vacinas. O leitor conhece o resto da história graças a uma entrevista publicada na noite de terça (29) por esta Folha.

Luiz Paulo Dominguetti Pereira, PM da ativa em Minas Gerais quando não está vendendo insumos de saúde, declarou à repórter Constança Rezende que ouviu de Dias um pedido de propina de US$ 1 por dose para fechar o negócio bilionário. Nesse mesmo dia, 25 de fevereiro, os jornais estampavam a marca de 250 mil mortos pela pandemia. Apesar de tantas derrapadas, a atual administração não havia sido confrontada pelas palavras “Bolsonaro” e “propina” em um mesmo título de reportagem factual. Não é pouca coisa, e o impacto foi enorme na mídia brasileira e no exterior.

Ilustração de Carvall para coluna do Ombudsman de 4.jul.21
Carvall

Na quinta (1º), convocado pela CPI da Covid, Dominguetti repetiu as acusações e disse que esteve no ministério três vezes para tratar da proposta. O que causou ruído, porém, foi o policial ter forçado a revelação de um áudio em que o deputado Luis Miranda, pivô do caso Covaxin, aparece negociando alguma coisa. Dominguetti tentou emplacar a tese de que eram vacinas, mas foi desmentido, teve que se retratar e quase acabou preso.

Senadores de oposição logo levantaram a tese de que o depoente fora plantado na CPI para desqualificar Miranda, em uma espécie de Operação Uruguai, a tosca manobra que tentou explicar os gastos estratosféricos do então ameaçado presidente Fernando Collor em 1992. Com a comissão convulsionada, a Folha, pela segunda vez na semana, virou pauta de discussão nas redes sociais. De onde o jornal tirou esse personagem? Por que ele apareceu, por que falou o que falou? Explica, Folha!

O jornal tomou a iniciativa de explicar. No mesmo dia, publicou texto esclarecendo as circunstâncias da entrevista, como a repórter chegou à empresa, ao seu procurador e ao preposto Dominguetti.

De fato, é difícil acreditar que uma firma desse porte, sem histórico confiável, teria capacidade de entregar qualquer coisa. A própria AstraZeneca veio a público para lembrar que só negocia com governos. E a patética figura do cabo, claro, corrobora o cenário de armação. Não foi a Folha, no entanto, quem deu crédito a essa fantasia, mas o governo federal. Está documentado que, de boa-fé ou de má-fé, integrantes da Saúde se dispuseram a discutir algo que escancaradamente não parecia ser um negócio reto.

O governo tergiversa, mas a semana que começou com a acusação dos irmãos Miranda acerca de um contrato de R$ 1,6 bilhão se encerra com um inquérito autorizado pelo STF para apurar a prevaricação de Bolsonaro e na apuração da suposta propina, motivo de alvoroço na CPI.

É dose

“Registros indicam que milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra a Covid; veja se você é um deles.” O título de sexta (2) é peremptório e fez muita gente, incluindo este ombudsman, checar seu cartão de vacinação. Só faltava essa...

Prefeituras de várias cidades, porém, logo negaram a aplicação de doses fora do prazo e, pela terceira vez na semana, a Folha virou assunto nas redes. O jornal registrou a queixa, mas disse que tirou os dados dos registros oficiais do Ministério da Saúde. E se estes estiverem errados, como fica?

A coluna voltará ao tema.

Antes tarde

Jornalismo é uma profissão ingrata. Um dia você consegue um furo, uma informação exclusiva; no seguinte aparece alguém para desqualificar o seu trabalho. Outras vezes, nem é preciso um detrator: o próprio objeto da reportagem derrota o repórter, que se sente impotente diante de uma questão que a apuração, por melhor que seja, não vai resolver.

Esse talvez fosse o destino escrito da série Inocentes Presos, um levantamento de falhas gritantes em processos de investigação policial, esquecidas nos labirintos jurídicos do país, como a que ocorreu no caso de José Aparecido Alves Filho, que foi ao ar na quarta (30).

Trabalhador rural, preso há sete anos, foi condenado em primeira e segunda instâncias por ter sido apontado como comparsa de um réu confesso em um roubo seguido de morte. A reportagem desfia sua condenação, baseada em depoimento controverso cujo autor voltou atrás. A Justiça não aceitou a retratação.

Após a publicação de sua história, no entanto, o ministro do STF Edson Fachin anulou a condenação, e José Aparecido deixou a penitenciária no interior paulista na sexta (2).

É por esses raros momentos que o jornalismo vale a pena.

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