José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Outro lado, teoria e prática

Regra da Folha de ouvir as partes afetadas faz falta em qualquer caso

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"Ouviu o outro lado?" Qualquer repórter que tenha trabalhado na Folha já ouviu esse questionamento. Não é uma pergunta retórica. Está no Manual (págs. 74 a 76) e é um instituto basilar do Projeto Folha. "O outro lado é elemento integrante da apuração, e não mera declaração a ser registrada burocraticamente." Há regras até para o destaque a ser dado à versão dos afetados pela reportagem, pessoa ou entidade.

O jornal apanha ao fazer o outro lado. Frequentemente é acusado no Painel do Leitor de não cumprir o próprio Manual, de não ter procurado as partes ou dado tempo razoável para explicações. Muitas vezes isso não é verdade, apenas argumento de assessores de imprensa e advogados no intuito de criar dúvida sobre determinado conteúdo publicado.

Curiosamente, na era Bolsonaro o processo soa quase protocolar. A ojeriza do Planalto à imprensa profissional afasta o governo do diálogo formal e transforma o outro lado rotineiramente em um não comentário, uma negativa seca ou uma tergiversação qualquer. Aí é preciso buscar uma declaração anterior, dados informados à Justiça, por exemplo, algo que funcione como contraditório. Afinal, a regra tem que ser cumprida.

Ilustração carvall referente a coluna publicada no dia 28 de agosto de 2021.O desenho de uma vitrola com quatro discos em cima.
Carvall

Já foi mais complicado. Um observador malicioso diria que por excesso de interlocução na era FHC e de atrito na era Lula. A relação do petista com o jornal, inclusive, continua litigiosa, como mostra o ocorrido na última semana. Um texto acessório à reportagem sobre a rejeição da denúncia do sítio de Atibaia, no domingo (22), causou celeuma. Na descrição do título, sobre "a série de casos na Justiça" a que Lula ainda responde. No dia seguinte, o PT divulgou nota para dizer que a Folha "engana os leitores ao apresentar como processos em aberto decisões judiciais definitivas que inocentaram o ex-presidente". A nota diz ainda que o jornal fez um "tribunal de exceção, até porque a Folha não ouviu a defesa de Lula". Faltou outro lado?

Um texto com essa característica foi publicado na noite de segunda-feira (23).

Horas antes, um conjunto de reportagens em Ambiente dava conta de uma confluência de problemas novos e antigos do país: a fumaça das queimadas agrava a Covid-19 na Amazônia. Pouco depois da publicação, em crítica interna à Redação, o ombudsman elogiou o material, mas observou que seria interessante ouvir as autoridades de saúde e os governos locais citados. Por cinco textos, foi ignorado.

Há uma ponderação a ser feita: não se trata de conteúdo original da Folha, mas de um parceiro que teve apoio de uma bolsa e um programa de jornalismo americanos. Outro aspecto seria a responsabilidade um tanto difusa pelas mazelas retratadas.

Pesquisadora ouvida na própria reportagem, porém, não deixa dúvidas: "A questão da falta de governança por parte dos governos municipais, estaduais e federais, que resulta em menor fiscalização, também entra nessa equação. As pessoas estão se sentindo mais tranquilas para queimar".

Sim, faltou outro lado. Seria certamente protocolar, sem respostas, evasivo, mas tinha que ser feito, ainda mais em um projeto de contorno ativista. Não importa a plataforma, a fragmentação do noticiário, a autoria do conteúdo, se a Folha publicou, é preciso seguir as regras. Os tempos são outros, cada vez mais textos de terceiros são usados no jornal, o que é bom para a audiência, para a diversidade. Não custa pedir à turma que dê uma lida no Manual.

Um lado só

Se a leitura chegou até aqui e tudo parece teoria, vamos à prática. A reportagem mais comentada da semana não foi sobre Lula, Bolsonaro ou o propalado golpe no feriado, mas um texto da Folhinha no sábado (21) sobre testes em animais.

Aqui o problema não era apenas o outro lado, mas só ouvir um lado. No caso, uma cientista, que explica a necessidade dos testes, como são feitos, cuidados para minimizar o sofrimento dos bichos e curiosidades do tipo macaquinhos gostam de assistir a filmes como "O Rei Leão". A seção "O Legal da Ciência" apresenta um especialista para falar de um tema de sua área. Desta vez, o formato não deu certo.

Leitores encheram a caixa de entrada da coluna com reclamações, a começar sobre o título: "Testes em animais permitem saber se as coisas são seguras". Não haveria tal garantia, já que os organismos são diferentes. A queixa principal foi para a assertiva de experiências em cobaias serem absolutamente necessárias; há uma cadeia de consumo a obrigá-las; baseiam-se na presunção de que humanos têm prerrogativa sobre outros seres vivos.

Em resposta a uma das cartas sobre o tema, no Painel do Leitor, a editora Marcella Franco reconheceu que o debate é bem mais amplo do que o texto consegue abarcar e que, em reportagem futura, a Folhinha mostrará a posição de cientistas contrários aos testes.

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