José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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As 550 mil vidas da Prevent Senior

Escândalo merece rigor na apuração e consciência sobre quem pode sofrer

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No jargão do mercado, clientes de planos de saúde são contados como vidas. É um termo apropriado, já que o objetivo dessas empresas é manter os atendidos vivos e, dentro do possível, com boa saúde. Quanto menos gente doente, menos se gasta e mais se fatura. Quanto mais enfermos, mais despesas e, óbvio, menor o faturamento. Não há perda total, como no caso dos automóveis, em que o segurado recebe o valor de um carro destruído para comprar outro e contratar uma nova apólice. Mortos não pagam plano de saúde. A expressão vidas, enfim, é português correto.

Prevent Senior foi o assunto da última semana. Prestamos atenção também ao falacioso discurso de Jair Bolsonaro na ONU, ao ensaio de um novo colapso financeiro mundial, agora a partir da China, ao indiciamento do delegado youtuber em São Paulo e à vacinação de caipira da primeira-dama em Nova York. Mas, vida real de verdade, com o perdão do trocadilho pobre, apenas as que pagam para a operadora.

Tudo bem, a crise da Evergrande promete doer no bolso e no estômago de muitos, porém soa como abstração quando diluída na realidade do país de Paulo Guedes —Selic e inflação galopantes, crise de energia e o governo especulando um teto de gastos solar para viabilizar fatos eleitoreiros.

Vida real, cabe também explicar, é jargão de jornalista. Quando existe a necessidade de abordar as consequências práticas e cotidianas de um determinado assunto, o pedido para a reportagem é esse, "precisamos de um pouco de vida real aqui". Ela sobra no caso da Prevent Senior.

Curiosamente, levou dias para os jornais acordarem para a ponta fraca da corda. A Folha, por exemplo, só trouxe reportagem com relatos de usuários do plano na tarde de sexta-feira (24). Concorrentes foram mais rápidos, mas não muito.

Ilustração para coluna Ombudsman de 26 de setembro de 2021. Nela um parafuso gigante e um pictograma de um idoso
Carvall

Grosso modo, Prevent Senior era uma discussão adormecida da CPI da Covid em Brasília até quase o fim da semana anterior, quando reportagem da Globonews trouxe o estudo ilegal sobre cloroquina e a omissão de sete óbitos.

A segunda paulada na empresa veio da revista Piauí, a morte do médico negacionista Anthony Wong por Covid-19, fato escondido, nas palavras da publicação, por 123 profissionais de um hospital da rede. Descobriu-se então o óbito, também com a causa original suprimida da certidão, da mãe do empresário bolsonarista Luciano Hang; o diálogo comprometedor do diretor-executivo com um dos médicos denunciantes; a desconcertante admissão do mesmo executivo de que as CIDs eram adulteradas; a entrevista com o fundador da empresa, ponto alto da Folha nessa cobertura, em que ele admitiu que a experiência feita com seus pacientes não conseguiu comprovar que cloroquina funciona.

Em termos jornalísticos, um massacre, que havia muito não se via e por vezes faz lembrar momentos pouco edificantes da mídia nacional. De um lado, facilitado pela atitude pregressa da empresa, que se descontrolou ao registrar as primeiras mortes no país no começo da pandemia, no ano passado, e pelo comportamento petulante de seu principal dirigente na oitiva do Senado. Do outro, fonte de preocupação para as 550 mil vidas que bancam o plano, voltado para idosos que dificilmente encontrariam alternativa semelhante no mercado, seja em preço seja em oferta de serviços.

Em tempo, isso não é uma defesa da Prevent Senior. Comprovadas as acusações, dentro do devido processo legal, seus gestores merecem o rigor da lei. Ocorre que não se trata de uma Precisa Medicamentos ou de uma VTCLog, para ficar apenas em dois nomes enrolados da CPI, que serão substituídos, se o forem um dia, por outro tubarão dos tantos que rondam os cofres públicos. No caso da Prevent Senior, pelo contrário, milhares de peixes pequenos podem ser afetados.

Autoridades e imprensa têm esse desafio extra no manejo da questão. É preciso proteger os segurados de eventuais ações deletérias do plano, mas também é preciso garantir que continuem com um plano. Ajudaria bastante se as entidades de classe, Conselho Federal de Medicina à frente, assumissem o seu papel e, com transparência, discutissem os limites éticos do ato médico. É notável que seus prepostos não tenham se pronunciado. Parecem satisfeitos com o papel de fiadores de argumento negacionista na boca do presidente, mesmo que em vexatória exposição mundial.

À Folha e aos demais veículos resta perseguir o esclarecimento dos fatos graves ocorridos na operadora e da relação, ao que tudo indica, perniciosa com o chamado gabinete paralelo montado por cientistas de consultório em torno de um Planalto delirante.

É preciso ambição também para incluir outros planos na investigação. Cifras bilionárias, recepções cafonas com piano de cauda, assimetrias e odores suspeitos se misturam no setor há vários governos.

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