José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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O salto evangélico é alto

Folha precisa ajustar foco e entender quando Bolsonaro é apenas passageiro

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Jornais têm certos pruridos. Alguns fatos às vezes são omitidos em títulos e manchetes por serem óbvios, para denotar equilíbrio, para não ferir susceptibilidades, porque estouram o número de toques, pela razão que for. São decisões, em geral, calibradas pela sensibilidade de redatores e editores, não raro traduzidas com malícia por quem lê. Não dizer certas coisas quase sempre as escancara.

André Mendonça, por indicação de Jair Bolsonaro e com a aprovação do Senado, é um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal. Essa é na prática a grande notícia que deveria constar dos principais enunciados da semana passada. Dos quatro grandes jornais nacionais, apenas O Globo foi direto ao ponto, mas já de olho na consequência, não na informação primária: "Aprovado ao STF, Mendonça vê 'salto para os evangélicos'".

Folha, O Estado de S.Paulo e Valor simplesmente pularam a religião e escreveram: "Senado aprova Mendonça como novo ministro do STF", "Senado aprova segundo nome indicado por Bolsonaro ao STF" e "Senado aprova André Mendonça para o Supremo". A Folha lembrou o assunto principal na linha-fina, o subtítulo que vai abaixo da manchete, notando que o novo integrante da corte prometeu, na sabatina feita pelos senadores, defender o estado laico. Os outros, nem isso. A breve análise é feita a partir das versões impressas, que ainda cumprem a função de registro histórico.

Mendonça é um evangélico no STF, esse é o dado objetivo. O resto é distanciamento forçado ou foco perdido no presidente. Religião, como cor da pele, etnia, origem ou orientação sexual, não deveria qualificar quem quer seja em qualquer posto, mas ainda estamos longe desse universo sem marcadores sociais. A primeira mulher fez história, assim como o primeiro negro e agora o primeiro evangélico. Do mesmo jeito que a primeira pessoa gay fará um dia, se duvidarmos dos que pregam um país em retrocesso.

Ilustração Carvall publicada na Folha no dia 05 de dezembro de 2021. Nela um pictograma de uma pessoa de braços aberto no centro uma cruz. Acima da cabeça 3 riscos.
Carvall

Mendonça fez história, mas acha mesmo é que foi para a Lua. Em sua primeira manifestação pública após a definição do placar da votação do Senado, soltou uma versão gospel da frase de Neil Armstrong e assustou os ouvintes seculares. Mais de um analista projetou a dúvida de qual Mendonça vestiria a capa de ministro, o garantista com a Constituição na mão que foi à sabatina ou o pastor gritando aleluia e glória a Deus abraçado à família e a Michelle Bolsonaro.

(Fácil escorregar no preconceito aqui. Certa vez, junto com um colega, fui designado para receber na Folha 16 líderes de diversas denominações. O intuito deles era apresentar o grupo, que ambicionava prescindir dos políticos religiosos profissionais de Brasília. Outros tempos, bem antes das trevas atuais. Ao fim do encontro, um dos pastores pediu para fazer uma oração pela Folha e por seus jornalistas. Claro, por que não? Foi estranho ouvir, no mais do que laico ambiente da Redação, gritos de aleluia e glória a Deus.)

Mendonça assusta pelo risco de subserviência ao projeto bolsonarista, como observado pelo jornal em editorial, e pela agenda de costumes que carrega de ofício. A chance de a imprensa misturar ou confundir uma coisa com a outra é grande. Vai faltar equilíbrio, como aquele demonstrado pelo senador Fabiano Contarato, que disse perceber o novo ministro como advento tolerável, ainda que conservador, para um Supremo mais diverso.

À Folha, para variar, não bastará só equilíbrio. Na quinta-feira (2), pouco depois de Mendonça amanhecer ministro, o jornal publicou uma pequena reportagem sobre ataques a terreiros de umbanda no interior de São Paulo. Em mensagem ao ombudsman, uma leitora notou a virulência dos comentários feitos ao texto no site, muitos associando a delinquência a evangélicos. Chegou a denunciar um deles aos moderadores do jornal. Para ela, fruto de erro calculado da Folha, maquiavélica ao fazer a publicação exatamente após a seleção ao STF, "para açular a matilha contra evangélicos mais uma vez".

Na mesma quinta-feira, no impresso, uma carta no Painel do Leitor criticava o jornal por ter dado "espaço a proselitismo religioso e obscurantismo na sua página de opinião". Outra missiva classificava como bálsamo as colunas assinadas pela jornalista Melina Cardoso, nas duas últimas semanas, de caráter abertamente confessional. Que o julgamento do mérito permaneça com os leitores, mas é notável que textos dessa natureza alcancem a página A2 da Folha.

Isso sim foi um salto, mas talvez não o que este diário precise no momento atual.

Assim como a cobertura de ambiente deveria ser importante por si e não apenas pelas boiadas soltas pelo governo, a cobertura de evangélicos há tempos pede vida própria. O católico Bolsonaro é só o passageiro de turno. É preciso atenção em quem constrói foguetes para chegar à Lua.

Erramos: o texto foi alterado

André Mendonça não é o primeiro evangélico no Supremo Tribunal Federal, como descrito em versão anterior deste texto. Antônio Martins Vilas Boas (1896-1987), batista, foi indicado para o tribunal em 1957 por Juscelino Kubitschek.

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