José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Não é fácil matar uma rainha

Folha comete erro crasso ao publicar indevidamente obituário de Elizabeth 2ª

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Deu no Twitter e em tudo o que é canto. A Folha matou a rainha Elizabeth 2ª, "aos XX anos", em uma desastrosa publicação na manhã de segunda-feira (11). A ressuscitação levou absurdos 25 minutos, que em tempo de internet é eternidade multiplicada, como anos de cachorro. O jornal apontou para um erro técnico em seu pedido de desculpas. Explicou também que é prática do jornalismo ter obituários prontos. Apanhou feio.

Se a leitora e o leitor acham impróprio o verbo "matar", o ombudsman comete a indiscrição de revelar que é assim que as Redações inapropriadamente descrevem o ato de anunciar a morte de alguém famoso. Não por sadismo ou ato falho, apenas por ser direto e configurar responsabilidade: é preciso muita segurança para dizer que alguém morreu.

Não é a primeira vez que a Folha mata alguém antes da hora. Caso rumoroso foi o de Romeu Tuma, o chefe da Polícia Federal durante a ditadura militar, depois senador com discurso de ordem, espécie de piloto que deu origem à série. O anúncio equivocado, em 2010, resultou em demissões e muitas pauladas neste diário, ainda que as redes sociais de então vivessem outra era geológica.

Antes da rainha, foi o rei. Ninguém menos do que Pelé já foi levado desta para melhor algumas vezes, por CNN, O Globo e outros veículos. Na onda mais recente, em fevereiro, o próprio foi ao Instagram fazer troça: "Estão dizendo por aí que eu não estou bem. Vocês não acham que eu estou bonitão?", indagou o craque, em pose de pugilista.

Alguns erros passam batido. Os da Folha, dificilmente. Concorrentes noticiam a derrapada, detratores à esquerda e à direita achincalham, Gregorio Duvivier faz piada ("Que fofo a Folha não querer revelar com quantos anos a rainha morreu"). The Guardian não faz graça, mas lembra algumas que circularam, como "God save the Folha". O jornal britânico também contextualiza a situação do país, lembrando que a maioria das críticas partiram de apoiadores de Jair Bolsonaro, que "frequentemente ataca a Folha, assim como seu ícone político, Donald Trump, ataca a CNN".

Ilustração de uma coroa com uma coroa menor em cima dela e uma menor em cima das duas.
Carvall

Argumentar que houve um erro técnico parece esquiva e lembrar que obituários são feitos com antecedência é o mínimo. A Folha tem em torno de 200 artigos desse tipo prontos ou encaminhados. Alguns personagens, pela importância, tem edições preparadas. Longevo, Oscar Niemeyer obrigou a Redação a reeditar seus textos várias vezes, assim como a apresentação gráfica, por mais de uma década. Michael Jackson, no outro extremo, pegou o mundo de surpresa. Em 2021, a Folha publicou o obituário de Carlos Menem escrito por Clóvis Rossi, morto dois anos antes. A correspondente Sylvia Colombo atualizou o original.

Vale tudo, só não vale matar antes. Aí é vexame. Bom jornalismo se faz com antecedência, planejamento e, evidentemente, sem erros. Apresentar material digno à magnitude de uma figura pública, localizar e discutir seu legado, é papel básico da imprensa, o chamado registro histórico.

Porém, as horas de ruminação que o impresso às vezes permitia, a depender do horário de chegada da má notícia, não existem mais. No site, pronto é um apertar de botão, tornando cada vez mais sedutora a ideia de notícia feita em linha de montagem, eficiente na corrida por audiência até a próxima falha, técnica ou não. Mas jornalismo não é fábrica.

Vida longa à rainha. E ao rei.

Imagem é tudo

Na noite de segunda-feira (11), PM de folga reagiu a assaltante que portava arma de brinquedo. Um dos três tiros que o policial disparou matou estudante que passava pelo local, no centro de São Paulo. A notícia só apareceu na Folha na manhã seguinte, no formato de uma fotografia. A imagem, aviso de luto na porta da lanchonete do pai da garota, compunha uma galeria, "veja fotos de hoje", ao lado de inundações nas Filipinas e tempestade de areia em Bagdá.

"Estou impressionada com o critério do que é notícia para a Folha", reclamou uma leitora.

Em crítica interna, levei a queixa à Redação. Era muito pouco para algo muito forte. Na noite de terça-feira (12), enfim, a notícia chegou ao site. O obituário indigno de Ingrid Reis Santos, 21, chegou tarde.

Fosse assunto alheio à Folha, até daria para entender, mas medo em São Paulo, PM e saúde mental de agentes foram pautas do jornal na semana.

A Folha abdicou da notícia.

Na mesma noite de terça-feira, o Palmeiras enfiou 8 a 1 no Independiente Petrolero da Bolívia, pela Libertadores. Quem só lê a Folha soube agora do placar, descrito apenas como goleada em legenda de foto. Onde? Na mesma e eclética galeria de imagens.

A Folha abdicou do leitor.

Forfait

O ombudsman tira duas semanas de folga. O atendimento aos leitores continua. A coluna volta no dia 8 de maio.

Erramos: o texto foi alterado

Romeu Tuma (1931-2010) nunca foi deputado. Ele foi senador por São Paulo de 1995 a 2010. O texto foi corrigido. 

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