José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Descrição de chapéu jornalismo mídia

Não existe piloto automático

Acidente com ex-BBB mostra como é fácil para a mídia errar o foco da notícia

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"BBB 22: Eslovênia e Rodrigo tomam banho juntos e mãe da sister vibra." Sim, a Folha publicou um título assim em janeiro. A foto até que é inocente, os dois no chuveiro mais preocupados em mostrar o xampu que patrocina o programa. Pelo índice do jornal, em pouco tempo, Rodrigo foi de herói a vilão no jogo. Acabou eliminado do reality em fevereiro. Virou notícia de verdade no fim de março. A bordo de um carro de aplicativo, foi projetado do banco de trás após colisão na traseira de um caminhão. Estava sem cinto de segurança. O motorista não inventou desculpas, simplesmente disse que cochilou ao volante.

Para boa parte dos leitores, o parágrafo anterior traz pouca novidade. Desde o acidente, o ex-BBB, agora chamado Rodrigo Mussi, porque seu nome virou âncora de busca na corrida por audiência, é notícia obrigatória em quase todos os sites e noticiários de TV. Segue na UTI, está progredindo, mexe braços e pernas, estava triste, está agitado, apertou o dedo do irmão, abre os olhos, volta a abrir os olhos, aperta mão da família. Só na Folha, mais de 20 títulos da tragédia exposta até sexta-feira (8).

Peço, porém, que a leitora e o leitor voltem ao primeiro parágrafo, ponham a tragédia de lado e busquem a notícia. Jornalismo, muitas vezes, é o exercício de ter um monte de coisas na sua frente e perceber que existe mais por trás.

A Folha levou quase uma semana para publicar reportagem fora do drama: "Uso de cinto de segurança no banco de trás reduz em até 43% risco de morte". Uma busca no Google mostra o jornal até bem ranqueado no assunto, que muitos concorrentes ignoraram. Já um informe da 99, sobre permitir que motoristas cancelem viagens de quem se recusar a usar o dispositivo, teve notável adesão das Redações.

Há uma história ainda maior no acidente, pinçada por Juliano Spyer, antropólogo que escreve no site da Folha desde fevereiro. "O sono dos motoristas de aplicativo", o título de sua coluna, só não diz mais que o subtítulo: "Quem tem contas chegando e filhos para alimentar ou tem insônia na cama, ou dorme no volante de exaustão".

Ilustração mostra homem jovem caucasiano de shorts azul sentado de lado. Ele tem cabelo pretos, barba usa óculos escuros e sorri, segurando os óculos. Nas costas dele, um mecanismo de dar corta em brinquedos. Na frente dele, uma câmera.
Carvall

Spyer parte do episódio para uma perspectiva social; as contas dos motoristas de aplicativo há muito não fecham, e as jornadas de trabalho são cada vez mais longas para que consigam auferir algum rendimento. A tragédia de Kaique Reis, o condutor de Rodrigo Mussi, não foi percebida por boa parte da mídia, mas ela está aí, nas ruas, invisível, ao lado de inúmeras outras.

Como se diz no BBB, o Brasil tá vendo, mas só o que quer, na tela do celular, fingindo que o piloto é automático. Não é. Nem o jornalismo pode ser.

Lado B

Ainda sobre aplicativos, uma das grandes histórias da semana foi publicada pela Agência Pública na segunda-feira (4). Agências de publicidade a serviço do iFood teriam criado perfis falsos em redes sociais e infiltrado agente em manifestação para desmobilizar movimento de entregadores.

A empresa nega.

"O modelo era o da propaganda lado B. Tipo o que o Bolsonaro faz com o gabinete do ódio, mas que as agências já fazem há muito tempo", diz uma fonte no artigo. "Toda campanha grande tem uma equipe lado B que basicamente faz conteúdo sobre um inimigo. Sempre sem assinar." A produção descrita era sofisticada, com tudo pensado para parecer como conteúdo feito pelos próprios entregadores, com direito a piadas e memes.

Noticiários da Folha sobre os atos aparecem em trechos da reportagem. Em uma das citações, o jornal, ao lado de outros veículos, põe em título justamente aquilo que teria sido inseminado pelas agências em uma das manifestações.

O caso foi parar na CPI dos Aplicativos, em curso na Câmara paulistana, relatou a Folha na quinta-feira (7).

O iFood fez propaganda institucional no jornal nos últimos meses. Anúncios seriados sobre responsabilidade social foram contestados por associação de trabalhadores. Leitora remeteu o assunto ao ombudsman, pedindo uma atitude do jornal. A reclamação foi encaminhada à empresa.

Publicidade em jornal é sempre identificada. Anunciante e veículo põem a cara para bater, e não raro apanham, como no caso dos anúncios que defendiam kit Covid, mácula que vai perseguir a Folha sempre que se falar de pandemia.

É muito diferente do que pisca no celular, sem assinatura ou razão aparente. Estar do lado A, no entanto, não isenta o jornal de responsabilidades.

#twitterless

The New York Times pediu para seus jornalistas se afastarem do Twitter. Entre as razões, tempo e saúde mental. É o contrário do que pregou em 2014, quando iniciou sua revolução digital e pediu que todos se atirassem às redes. Se a moda pega por aqui, vai ter muita gente sem saber o que fazer para apurar uma notícia.

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