José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Dois-pontos: uma praga

Google adestra a redação dos títulos, que trocam a criatividade pela audiência

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Mario Sergio Conti, no último fim de semana, escreveu sobre o risco de extinção do ponto e vírgula. Lembrou também que "abundam os pontos de exclamação, enterrados no jornal pelo bate-estaca de colunistas fanfarrões". Acrescento outra abundância incômoda à análise: o sinal de dois-pontos.

Assim como os imperativos "entenda" e "veja", os dois-pontos estão em muitos títulos da Folha e de outros veículos por concisão, em princípio. Palavra ou expressão, que identifica o assunto do texto, é separada por dois-pontos da informação a ser transmitida. Exemplo na última semana foi o "Datafolha:", utilizado à exaustão. "Datafolha: Eleitor de Bolsonaro desconfia das urnas, defende armas e vê otimismo na economia"; "Datafolha: 7 em cada 10 rejeitam ideia de que armas trazem mais segurança"; "Datafolha: Aversão a Bolsonaro é dominante entre mulheres pobres e ricas".

Sobre este último, um comentário no Painel do Leitor até brincou com o formato. "Mulheres: sempre superiores."

Já o enunciado "98% querem que vacina contra Covid permaneça gratuita a todos, diz Datafolha" é a exceção dos últimos dias que explica a regra não escrita. Evitar o "diz", "vê", "revela" é poupar toques preciosos para citar tudo o que o instituto apura. Além disso, no mundo plano da internet, onde apenas títulos são lidos, o chamado chapéu, aquela palavra-chave que vem acima do enunciado, quase sempre é ignorado. Um problema sério dos jornais é deixar bem claro que alguns artigos são de opinião e de humor. Aí a solução é "Opinião: O PIB melhorou, mas pouca gente sentiu no bolso, na pele ou na alma".

A coisa começa a complicar quando o sistema contamina os títulos onde o marcador não é necessário. "Pelé usa jogo da Ucrânia para pedir a Putin: 'Pare com essa invasão'." Esse chegou ao impresso, na quinta-feira (2), em colisão com o Manual da Redação (pág. 125). O último item sobre títulos pede para que sejam evitados exclamação (salvo situações excepcionais), ponto, dois-pontos, interrogação, reticências, travessão e parênteses. A Redação, no entanto, se vale de outra instrução na mesma página do Manual, que orienta, em plataformas digitais, o uso de palavra-chave "destacada no início de qualquer título".

Ilustração de homem de terno andando, seguido por várias bolinhas azuis. Ele olha para elas, fazendo sinal de pare com as mãos.
Carvall

Tudo isso seria apenas curiosidade se o resultado final não fosse o enfado. Pela forma dos títulos, por vezes necessária, mas principalmente pela escancarada falta de criatividade. E a crítica aqui não é para os jornalistas. Sistemas de busca, leia-se Google, adestram a redação dos enunciados, ditam as fórmulas de audiência. Entre o título genial e o mais buscável, qualquer um optará por aquele que paga as contas.
Imaginar que tal influência dos buscadores fica apenas no título é ingenuidade.

Depp v. Heard

Johnny Depp processou a ex-mulher por um artigo dela publicado no Washington Post em 2018 em que seu nome não é citado. Após um carnaval planetário, que muitos acompanharam e muitos ignoraram, o júri questionou qual era um dos objetos de julgamento, tudo o que ela tinha escrito ou apenas o título. A juíza respondeu que era para levar em conta o título: "Amber Heard: Falei alto contra a violência sexual —e encarei a fúria de nossa cultura. Isso tem que mudar".

Com dois-pontos, é claro.

Agregados

Dias depois de a Folha trazer a mais importante pesquisa do ano até aqui, a que aponta para a chance de uma eleição decidida em primeiro turno, seu concorrente direto anunciou um agregador de levantamentos. O Estado de S.Paulo usa dados de 14 empresas para antever "o cenário mais provável da disputa a cada dia".

Agregadores são comuns nos EUA, mas novidade para o grande público brasileiro. O segredo está na calibragem do algoritmo que equilibra as diversas pesquisas, atribuindo pesos diferentes de acordo com metodologia, tamanho do campo e outras características. Agentes do mercado financeiro, que patrocinam boa parte dos institutos atualmente, usam ferramentas parecidas para análises particulares.

O ônus de buscar uma média ponderada das pesquisas é perder a notícia. O Datafolha foi a notícia da última semana justamente pelo resultado que trouxe sozinho. Tivesse seus números diluídos com outros, que não captaram o mesmo movimento dos eleitores, não estaria na boca do mundo político, que se movimentou bastante diante da perspectiva de primeiro turno.

Não obstante, há méritos na análise conjunta, desde que assim seja entendida, como um estudo de dados, não uma pesquisa efetiva. O que, obviamente, não vai acontecer, como se vê nos títulos do Estadão e de outros veículos com agregadores, como o site Jota, onde as ferramentas ganham o confortável papel de pesquisa própria. O dispendioso orçamento alheio é mero detalhe.

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