José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Descrição de chapéu jornalismo mídia

O exercício de esconder a notícia

Em semana quente, Folha escorrega na hora de publicar coisas importantes

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É difícil e caro fazer bom jornalismo, mas é bem fácil esconder ou desperdiçar notícia. Em semana de muita manchete quente, a Folha deslizou nos detalhes na hora de publicar acontecimentos importantes. Mas, como se sabe, o diabo mora neles, nos detalhes.

Dias antes de Jair Bolsonaro alegar que a Polícia Federal é independente, quando da prisão de seu ex-ministro da Educação, e da mesma Polícia Federal despejar provas de que tal independência não existe, a pasta da Justiça enviou ofício ao TSE para dizer que a corporação participará da fiscalização das urnas eletrônicas com o intuito de assegurar a "integridade e autenticidade dos sistemas eleitorais". O jornal levou 15 parágrafos na reportagem sobre o fato para citar a "retórica golpista" do presidente e evidenciar Anderson Torres no coro subversivo.

Não apenas a Folha cometeu esse equívoco. Em debate na Globonews, um grupo de analistas falava da insistência do governo em desacreditar as urnas, mote também do título do jornal, e do quanto elas eram confiáveis. Esse é exatamente o intuito bolsonarista, que o país discuta as urnas, enquanto o que precisa de debate é o golpe e como mitigá-lo. Ministro da Justiça reforça desconfiança golpista sobre o processo eleitoral seria enunciado bem mais direto.

"A prefeitura de Registro (a 188 km de São Paulo) suspendeu por 30 dias um procurador do município filmado agredindo uma colega com chutes e socos." Esse é o primeiro parágrafo do relato da Folha sobre a agressão pública de um homem contra uma mulher no interior paulista. O primeiro parágrafo, o chamado lide, é o mais importante do texto jornalístico, pois deve dar conta da notícia e de sua importância. De acordo com o lide da Folha, o mais importante da notícia de Registro é o sujeito sofrer uma suspensão. Espancar a mulher vem depois.

Padece de mal semelhante a primeira reportagem do jornal sobre a juíza de Santa Catarina que induziu uma menina de 11 anos, vítima de estupro, a desistir do aborto legal, algo revertido após o caso ganhar grande repercussão. Lide e título da Folha são ocupados pela apuração de CNJ e Corregedoria sobre a conduta da magistrada, quando o principal deveria ser exatamente a sua bizarra atuação.

Ilustração de Carvall mostra uma página de jornal apoiada numa parede com a silhueta de um homem escondida atrás dela
Carvall

A Folha chegou depois da concorrência nas duas histórias, o que explica, mas não justifica, o foco nos desdobramentos. Outra coisa que faz falta ao texto é a indagação da juíza à menina sobre adoção, se ela achava que o "pai do bebê", o estuprador, concordaria com a ideia. Não parece haver retrato mais fidedigno deste país. Colunas de opinião do jornal imprimiram a pérola.

Além da confusão entre fato e consequência, a semana também mostrou como é possível esconder a notícia dentro dela mesmo. Entre os vários títulos publicados pela Folha na quinta-feira (23) sobre a nova pesquisa Datafolha (em fatiamento excessivo do levantamento, estratégia para ranquear melhor nos mecanismos de busca), um falava do que interessa: "Datafolha: Lula tem 53% dos votos válidos no 1º turno ante 32% de Bolsonaro".

Perfeito, mas a notícia de verdade é que tais números fazem Lula levar no primeiro turno. O jornal acordou horas depois, alterando o enunciado para "Datafolha: Lula tem 53% dos votos válidos e poderia vencer no 1º turno".

Ainda que muita gente nas redes sociais pedisse esse como título principal do jornal, a Folha manteve o padrão de chamar como manchete do site e da Primeira Página a pesquisa sobre o primeiro turno. No caso do impresso, um equívoco, mas por outra razão. A notícia mais forte não era o Datafolha, com percentuais que andaram de lado, ainda que importantes, mas a afirmação do delegado responsável pela prisão de Milton Ribeiro de que seu trabalho sofria interferências. Um furo da Folha, relegado a uma chamada compartilhada com a soltura do ex- ministro, abaixo da dobra.

A notícia se impôs com as gravações na sexta-feira (24). Notícias sempre se impõem.

Ave, Cesare

"Folha em transe." Esse foi um dos comentários dirigidos ao ombudsman acerca da publicação da entrevista epistolar com Cesare Battisti. Para muitos, assunto requentado que a Folha usa para minar a candidatura Lula. Para outros, miopia noticiosa, pelo fato da segunda parte da entrevista ter ocupado a manchete do site do jornal na manhã de quinta-feira (23), quando era de se esperar repercussão ou mais informações sobre a prisão na véspera de Milton Ribeiro.

Não adianta explicar que as manchetes do site não seguem a lógica da Primeira Página do impresso ou que a hierarquia noticiosa da Home Page se submete aos caprichos da audiência e dos sistemas de busca. Até porque tudo isso é antijornalístico. A reportagem era interessante, mas nunca uma manchete. Que a Folha aguente a bronca.

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